quinta-feira, 27 de novembro de 2008

UNUM EST NECESSARIUM (Parte 2 - final)

Th. Vallgornera O.P. divide seu tratado Mystica Theologia divi Thomae, escrito para as almas contemplativas em 1662, em três partes :

1º) Da via purgativa, própria aos iniciantes, onde trata da purificação ativa dos sentidos externos e internos, das paixões, da inteligência e da vontade, pela mortificação, meditação, oração, e, no fim, da purificação passiva dos sentidos, que é como uma segunda conversão, onde começa a contemplação infusa; é a transição para a via iluminativa.

Este último ponto é capital nessa divisão, e está bem de acordo com dois dos mais importantes textos de São João da Cruz: (Noite Escura, 1, I, cap. VIII): “A purificação passiva dos sentidos é comum, ela se produz na maioria dos iniciantes”; (Noite Escura, 1. I, cap. XIV): “Os que progridem, ou avançados, se encontram na via iluminativa, é aí que Deus alimenta e fortifica a alma pela contemplação infusa”. Esta última começa, segundo S. João da Cruz, com a purificação passiva dos sentidos, que marca assim a transição da via dos iniciantes para a dos avançados.

Vallgornera conserva aqui essa doutrina, como no que se segue.

2º) Da via iluminativa, própria aos que progridem, onde, depois de um capítulo preliminar sobre as divisões da contemplação, fala dos dons do Espírito Santo, da contemplação infusa, que procede sobretudo dos dons da inteligência e da sabedoria. Ele declara que esta contemplação é desejável por todas as almas interiores por ser moralmente necessária para a plena perfeição da vida cristã. Esta segunda parte da obra, depois de alguns artigos relativos às graças extraordinárias (visões, revelações, palavras interiores), finaliza por um capítulo de nove artigos sobre a purificação passiva do espírito, que marca a passagem à via unitiva. É ainda o que tinha dito S. João da Cruz (Noite Escura, 1. II, cap. II, XI).

3º) Da via unitiva, própria dos perfeitos, onde a questão é a íntima união da alma contemplativa com Deus e seus graus até a união transformante.

Vallgornera considera essa divisão como tradicional, verdadeiramente conforme à doutrina dos Santos Padres, aos princípios de Sto. Tomás e ao ensino dos maiores místicos, que escreveram sobre as três idades da vida espiritual, mostrando como se faz geralmente a transição de uma à outra.

* * *

Nessa primeira parte, depois de termos falado das fontes da vida interior, trataremos de seu fim, isto é, da perfeição cristã à qual está ordenada, e da obrigação de tendermos a ela, cada um segundo sua condição. Em todas as coisas, é necessário considerar de início o fim, porque ele é o primeiro na ordem da intenção, embora seja o último na ordem da execução. De início, queremos o fim, se bem que só o obtenhamos em último lugar. É por isso que Nosso Senhor começou sua pregação falando das beatitudes, e é por isso que a teologia moral também começa pelo tratado do fim último, ao qual todos os nossos atos devem estar ordenados.

A VIDA DA GRAÇA É O COMEÇO DA VIDA ETERNA

A vida interior do cristão supõe o estado de graça, que é contrário ao estado de pecado mortal. E, no plano atual da Providência, toda alma se encontra ou em estado de graça, ou em estado de pecado mortal; em outros termos, ela está ou voltada para Deus, fim último sobrenatural, ou desviada d’Ele. Nenhum homem se acha em estado puramente natural, porque todos são chamados ao fim sobrenatural, que consiste na visão imediata de Deus e no amor que disso resulta. É para este fim supremo que a humanidade foi ordenada desde o dia da criação, e, depois da queda, é em direção a este fim que nos conduz o Salvador, que se ofereceu como vítima para a salvação de todos os homens.

Não basta, sem dúvida, para ter uma verdadeira vida interior, estar em estado de graça, como uma criança após o batismo, ou todo penitente após a absolvição de suas faltas. A vida interior pede, além disso, uma luta contra tudo o que nos leva a recair no pecado, e uma séria tendência da alma para Deus. Mas, se tivéssemos um profundo conhecimento do que é o estado de graça, veríamos que ele não é somente o princípio de uma verdadeira vida interior muito santa, mas o germe da vida eterna. Importa insistir nisso desde o começo, lembrando as palavras de Sto. Tomás: “Bonum gratiae unius majus est quam bonum naturae totius universi”: o menor grau de graça santificante vale mais do que o bem natural de todo o universo (1ª IIae., q. 113, a. 9, ad 2); porque a graça é o germe da vida eterna, incomparavelmente superior à vida natural da nossa alma ou à dos anjos.

* * *

Mais claramente ainda, antes da Paixão, Jesus disse, como está relatado em S. João, XVII, 3: “Pai, é chegada a hora, glorifica teu Filho, para que teu Filho te glorifique a ti. Pois lhe deste poder sobre toda a criatura, para que ele dê a vida eterna a todos aqueles que lhe deste. Ora, a vida eterna consiste em que te conheçam a ti, um só Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, que enviaste”.

O próprio S. João Evangelista nos explica essas palavras do Salvador, quando escreve: “Caríssimos, desde agora somos filhos de Deus, mas não se manifestou ainda o que havemos de ser. Sabemos que, quando isto se manifestar, seremos semelhantes a Deus, porquanto o veremos como Ele é” (I Jo III, 2). Nós o veremos tal como Ele é, e já não apenas pelo reflexo de suas perfeições nas criaturas, na natureza sensível ou nas almas dos santos, que transparece em suas palavras e em seus atos; nós o veremos imediatamente, tal como Ele é em si mesmo.

São Paulo acrescenta: “Hoje vemos (Deus) como por um espelho, confusamente; mas então veremos face a face. Hoje conheço em parte; mas então conhecerei totalmente, como sou conhecido eu mesmo” (I Cor XIII, 12).

Note-se que S. Paulo não diz: eu o conhecerei como eu próprio me conheço, como conheço o interior de minha consciência. Certamente conheço esse interior de minha alma melhor do que os outros homens, mas ele guarda segredos para mim, não posso medir toda a gravidade de minhas faltas, direta ou indiretamente voluntárias. Só Deus me conhece a fundo; os segredos de meu coração só são perfeitamente descobertos sob seu olhar.

Ora, diz São Paulo, então eu O conhecerei como sou conhecido por Ele. Assim como Deus conhece a essência de minha alma e minha vida íntima sem intermediário, eu O verei sem o intermédio de nenhuma criatura, e até, acrescenta a teologia[2], sem intermédio de nenhuma idéia criada. Nenhuma idéia criada, com efeito, pode representar, tal como ele é em si, o puro clarão intelectual eternamente subsistente que é Deus e sua verdade infinita. Toda idéia criada é finita, ela é um conceito de tal ou tal perfeição de Deus, de seu ser, de sua Verdade ou de sua bondade, de sua sabedoria ou de seu amor, de sua misericórdia ou de sua justiça. Mas esses diversos conceitos das perfeições divinas são incapazes de nos fazer conhecer, tal como é em si, a essência divina soberanamente simples, a Deidade ou a vida íntima de Deus. Esses conceitos múltiplos são, em relação à vida íntima de Deus, à simplicidade divina, um pouco do que são as sete cores do arco-íris em relação à luz branca de que procedem. Aqui em baixo, somos como homens que só teriam visto as sete cores e que desejariam ver a luz pura, que é sua fonte eminente. E, enquanto não virmos a Deidade tal como é em si, não chegaremos a ver a íntima conciliação das perfeições divinas, em particular da infinita Misericórdia e da infinita Justiça. Nossas idéias criadas a respeito dos atributos divinos são como pequenas peças de mosaico que endurecem um pouco a fisionomia espiritual de Deus. Quando pensamos em sua justiça, ela pode nos parecer rígida demais, e, quando pensamos nas predileções gratuitas de sua misericórdia, elas podem nos parecer arbitrárias. Refletindo sobre isso, dizemo-nos: mas, em Deus, justiça e misericórdia estão fundidas, não há nenhuma distinção real entre elas. É verdade, nós o afirmamos com certeza, mas não vemos ainda a íntima harmonia dessas perfeições divinas. Para vê-Ia, seria necessário ver imediatamente, sem a intermediação de nenhuma idéia criada, a essência divina tal como ela é em si mesma.

Essa visão constituirá a vida eterna. Ninguém pode exprimir que alegria e que amor resultarão dela em nós : amor de Deus tão forte, tão absoluto, que nada poderá daí em diante, não somente destruí-lo, mas diminuí-lo; amor pelo qual nós nos regozijaremos, sobretudo de que Deus seja Deus, infinitamente santo, justo, misericordioso; nós adoraremos todos os decretos de sua Providência em vista da manifestação de sua bondade. Teremos entrado em sua beatitude segundo a própria expressão do Salvador: “Muito bem, servo bom e fiel, já que foste fiel no pouco, eu te confiarei muito. Vem regozijar-te em teu senhor”, “intra in gaudium Domini tui”. Nós veremos a Deus como Ele próprio se vê imediatamente, sem, entretanto, esgotar a profundidade de seu ser, de seu amor e de seu poder, e nós O amaremos como Ele se ama.

Veremos também nosso Senhor Jesus Cristo, nosso Salvador.

Tal é, essencialmente, a bem-aventurança eterna, sem falar na alegria acidental que teremos ao ver e amar à Virgem Maria e a todos os santos, mais particularmente as almas que tivermos conhecido durante nossa viagem sobre a terra.
[2] Conf. S. Tomás — Ia., q.12, a.2.
Excertos da obra Les trois ages de la vie interieure — Les Éditions du Cerf — Paris — 1951 — Trad. de Maria Teresa Hernandez. Fonte: www.permanencia.org.br

terça-feira, 25 de novembro de 2008

UNUM EST NECESSARIUM (Parte 1)

Por R. Garrigou-Lagrange, O. P.


A vida interior, todos o podem facilmente conceber, é uma forma elevada da conversa íntima que cada um tem consigo mesmo, desde que se encontre só, mesmo no tumulto das ruas de uma grande cidade. Quando deixa de conversar com seus semelhantes, o homem conversa interiormente consigo mesmo sobre aquilo que o preocupa mais. Essa conversa varia muito de acordo com as diversas idades da vida, a do velho não é a mesma do jovem; e também varia muito se o homem é bom ou mau.

Desde que procure seriamente a verdade e o bem, essa conversa íntima consigo mesmo tende a tornar-se conversa com Deus, e pouco a pouco, em vez de procurar a si mesmo em tudo, em vez de tender de modo mais ou menos consciente a fazer de si o centro de tudo, o homem tende a buscar Deus em tudo, e a substituir o egoísmo pelo amor de Deus e das almas n’Ele. Eis aí a vida interior; nenhum homem sincero porá dificuldades em reconhecê-lo.

O único necessário de que falava Jesus a Marta (Lc X, 42) e a Maria consiste em escutar a palavra de Deus e viver dela.

A vida interior assim concebida é em nós algo muito mais profundo e mais necessário do que a vida intelectual ou o cultivo das ciências; do que a vida artística e literária, do que a vida social ou política. Encontram-se grandes sábios, matemáticos, físicos, astrônomos, que não têm, por assim dizer, nenhuma vida interior, que se dedicam ao estudo de suas ciências como se Deus não existisse. Eles não têm, nos momentos de solidão, nenhuma conversa íntima com Ele. Suas vidas parecem, sob certos aspectos, ser a procura da verdade e do bem em certo domínio mais ou menos restrito, mas elas são tão mescladas de amor-próprio e de orgulho intelectual, que nos perguntamos se darão frutos para a eternidade. Muitos artistas, literatos e políticos não ultrapassam esse nível de atividade puramente humana que é, em suma, exterior. O fundo de suas almas vive de um bem superior a eles mesmos, vive de Deus? Não parece.

Isso mostra que a vida interior, ou vida da alma com Deus, bem merece ser chamada o único necessário, pois é através dela que tendemos para o nosso fim último e nos é assegurada nossa salvação, a qual não se deve separar muito da santificação progressiva, porque esta é a própria via da salvação.

Muitos parecem pensar: afinal, é suficiente que eu seja salvo; não é necessário ser um santo. Não é necessário ser um santo que faça milagres e que tenha a santidade oficialmente reconhecida pela Igreja, é bem evidente; mas, para ser salvo, é necessário tomar o caminho da salvação, e este é ao mesmo tempo o da santidade: Só haverá santos no céu, tenham eles lá entrado imediatamente após a morte ou tenham tido necessidade de ser purificados no purgatório. Ninguém entra no céu sem essa santidade que consiste em estar puro de toda falta; toda falta, mesmo venial, deve ser apagada, e a pena devida ao pecado deve ser suportada ou remitida, para que uma alma goze para sempre da visão de Deus, O veja como Ele se vê e O ame como Ele se ama. Se uma alma entrasse no céu antes da remissão total de suas faltas, não poderia ficar lá, e ela mesma se precipitaria no purgatório para ser purificada.

A vida interior do justo que tende para Deus, e que já vive d’Ele, é o único necessário; para ser um santo, não é, evidentemente, indispensável ter recebido uma cultura intelectual ou ter grande atividade exterior; basta viver profundamente de Deus. É o que vemos nos santos da Igreja primitiva, entre os quais muitos eram pobres, e até escravos; é o que vemos num São Francisco, num São Bento José Labre, num Cura d'Ars e em tantos outros.

Todos compreenderam profundamente esta palavra do Salvador: “De que serve ao homem ganhar o universo se ele vem a perder sua alma?” (Mt XVI, 26). Se se sacrificam tantas coisas para salvar a vida do corpo, que no final deve morrer, que não deveríamos sacrificar para salvar a vida da alma, que deve durar eternamente? O homem não deve amar mais a alma do que o corpo? “Que dará um homem em troca de sua alma?”, acrescenta o Salvador (ibid.). — Unum est necessarium, diz ainda Jesus (Lc X, 42): uma só coisa é necessária, escutar a palavra de Deus e viver dela para salvar a alma. Está aí a melhor parte, que não poderia ser tirada da alma fiel, ainda que ela perdesse todo o resto.

* * *

Quando os homens querem passar sem Deus, o importante da vida se desloca. Se a religião já não é coisa séria e grave, mas uma coisa de que sorriem, eles vão buscar o importante noutro lugar. Colocam-no ou pretendem colocá-lo na ciência, ou na atividade social; querem trabalhar religiosamente na procura da verdade cientifica, ou no restabelecimento da justiça entre as classes e os povos. E depois de algum tempo são obrigados a reconhecer que chegaram a uma grande confusão, e que as relações entre os indivíduos e os povos se tornam mais e mais difíceis, se não impossíveis. É claro, como disseram Sto. Agostinho e Sto. Tomás[1], que os mesmos bens materiais, ao contrário dos espirituais, não podem pertencer ao mesmo tempo integralmente a muitos. A mesma casa, a mesma terra não podem simultaneamente pertencer totalmente a muitos homens, nem o mesmo território a muitos povos. Donde o terrível conflito de interesses, quando os homens febrilmente põem seu fim último nesses bens inferiores.

* * *

Ao contrário, e Sto. Agostinho gosta de insistir nisso, os mesmos bens espirituais podem pertencer simultaneamente e integralmente a todos e a cada um. Sem que um incomode o outro, podemos possuir plenamente a mesma verdade, a mesma virtude, o mesmo Deus. É por isso que Nosso Senhor nos diz: Procurai o reino de Deus, e todo o resto vos será dado por acréscimo (Mt VI, 33).

Não escutar essa lição é trabalhar para a ruína.

Assim se verifica ainda uma vez a palavra do Salmo CXXVI, 1: “Nisi Dominus aedificaverit domum, in vanum laboraverunt qui aedificant eam, nisi Dominus custodierit civitatem, frustra vigilat qui custodit eam — Se o senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a constroem. Se o Senhor não guardar a cidade, em vão vigiam as sentinelas”.

Se o importante da vida se desloca, se já não são nossos deveres para com Deus, mas sim a atividade científica ou social do homem; se o homem busca constantemente a si mesmo, em lugar de buscar a Deus, seu fim último, os fatos não tardam a mostrar-lhe que ele se embrenha por uma via impossível, que conduz não somente ao nada, mas à desordem insuportável e à miséria. É necessário voltar a esta palavra do Salvador: Aquele que não é por mim é contra mim; e quem não junta comigo dispersa (Mt XII, 30). Os fatos o confirmam.

* * *

Segue-se dai que a religião só pode dar uma resposta eficaz, verdadeiramente realista, aos grandes problemas atuais se ela é uma religião profundamente vivida; não somente uma religião superficial, barata, que consistiria em algumas orações vocais, e algumas cerimônias onde a arte religiosa teria mais lugar do que a verdadeira piedade. Não há religião profundamente vivida sem vida interior, sem essa conversa íntima e freqüente de cada um de nós não apenas consigo mesmo, mas com Deus.
[1] Cf. S. Tomás — 1, IIe., q. 28, a. 4, ad. 2; III, q. 23, a. 1, ad. 3.
Excertos da obra Les trois ages de la vie interieure — Les Éditions du Cerf — Paris — 1951 — Trad. de Maria Teresa Hernandez. Fonte: www.permanencia.org.br

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

LADAINHA LAURETANA - Mãe Castíssima

Nunca houve alguém que amasse a castidade como ela. Seguindo os costumes da Antiga Aliança as mulheres judias tinham muito maior estima pelo privilégio da maternidade, do que o comprometimento com a virgindade. Mas assim não foi com Maria, pois que a partir dela nasceria Aquele que veio para selar a Nova Aliança. E ainda jovem comprometeu-se a esse elevado estado de pureza.

Podemos perceber esse seu amor pela castidade quando lhe aparece o anjo para dizer que seria mãe do Filho de Deus, e, em espanto, pergunta “Como vai acontecer isso se não conheço varão?”. Nem por um instante pensou em sacrificar sua virgindade, mesmo por tão grande honra, até que o anjo explicou-lhe que sobre ela desceria o Espírito Santo. Sua reação é de se estranhar estando ela prometida em casamento a São José, pois diante de tão sublime aviso, pensou primeiramente em como haveria assim de suceder querendo ela preservar sua castidade.

Por essas razões é tão louvável também o papel do casto esposo de Maria Santíssima. São José como o provedor da Sagrada Família, pois foi também o responsável por proteger a castidade de N.Sra.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Óró 'sé do bheatha 'bhaile - Mary Black

A cantora irlandesa Mary Black canta uma música tradicional de seu país, que trata da ocupação inglesa.


Em tempos de eleição - "Carta aos Governantes dos Povos"

Carta aos Governantes dos Povos

Por
São Francisco de Assis


A todos os podestás, cônsules, juizes e regentes no mundo inteiro, e a todos quantos receberem esta carta, Frei Francisco, mísero e pequenino servo no Senhor, deseja saúde e paz.
Considerai e vede que "se aproxima o dia da morte"(Gn 47,29). Peço-vos, pois, com todo o respeito de que sou capaz que, no meio dos cuidados e solicitudes que tendes neste século, não esqueçais o Senhor nem vos afasteis dos seus mandamentos. Pois todos aqueles que o deixam cair no esquecimento e "se afastam dos seus mandamentos" são amaldiçoados (Sl 118,21) e serão por Ele "entregues ao esquecimento" (Ez 33,13). E quando chegar o dia da morte, "tudo o que entendiam possuir ser-lhe-á tirado" (Lc 8,18). E quanto mais sábios e poderosos houverem sido neste mundo, tanto maiopulta "tormentos padecerão no inferno" (Sb 6,7).
Por isso aconselho-vos encarecidamente, meus senhores, que deixeis de lado todos os cuidados e solicitudes e recebais com amor o santíssimo sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, por ocasião de sua santa memória. Diante do povo que vos foi confiado, prestai ao Senhor este testemunho público de veneração: todas as tardes mandai proclamar por um pregoeiro, ou anunciai por algum sinal, que todo povo deverá render graças e louvores ao Senhor Deus Todo-Poderoso. E se não o fizerdes, sabei que havei de dar conta perante vosso Senhor Jesus Cristo no dia do juízo.

Os que levarem consigo este escrito e o observarem saibam que serão abençoados por Deus nosso Senhor.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

LADAINHA LAURETANA - Mãe Puríssima


“Você é bela, minha amada, e não tem um só defeito!” (Ct 4,7). Não poderia sequer por um momento aquela que veio para esmagar a cabeça da serpente sob seus pés ter sido escrava do demônio. Todos os maiores santos nasceram com a nefasta mancha do pecado original, mas não Maria. Deus distribui graças de maneira desigual, concedeu assim graças em muito maior número a Maria, para que pudesse ela ser mãe de seu Filho. E desse grandioso número de graças foi ela merecedora, sendo pura em seu leito derradeiro de igual forma como no momento de sua concepção.

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Menos de mil e mal pagos



















Eram menos de mil e mal pagos
Os que acima ao centro pisaram,
As terras de um Novo Mundo amado,
Protegidos por ferro, fogo e cruz.

Nas escadarias jorrava sangue e descia,
Rolava mais um corpo de guerreiro que perdia
Seu coração ofertado ao sol
E sua vida contra noite dada.

Mas a noite não descansa,
Vinha sempre, e sempre escura,
Só por lua e estrelas respingadas
Iluminando tão maldita bravura.

Cem mil eram os grandes,
Os que ao sol adoravam.

Menos de mil e mal pagos
Os que acima ao centro pisaram.

Numerosos, mas dispares,
Os que um a um o coração perdiam.
Infelizes com os grandes ficaram,
E nessa luta, forças aos de corpo férreo juntaram.

Não foi de fogo a vitória,
Nem de ferro a defesa,
Bastou estratégia,
E o rancor de um povo massacrado.

Isso sem desprezar,
A bravura d’o mar cortar,
E não temer peleja sob olhar,
De tão doce Grand Guadalupana!


Por
Gustavo V. Andrade

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

LADAINHA LAURETANA - Mãe da Divina Graça

Assim como anunciou o Arcanjo Gabriel, Maria, mesmo antes do nascimento, e ainda mesmo antes da concepção de Cristo, estava repleta de graças (“cheia de graça, o Senhor é convosco”). Vemos que no latim é expresso de forma mais completa o significado da saudação do anjo, pois dela é dito ter “grátia plena” (plena de graça).

Livre das más inclinações acarretadas pelo pecado original ela continuou a crescer em graças enquanto viveu, pois não trazia por si amor algum, assim como para o mundo, tendo suas atenções apenas em Deus. Ela alcançou uma graça que nenhum outro ser alcançou, de ter o próprio Deus em si. Maria não só abundava em graças, como dela nasceu Aquele que é autor das graças. Os santos recebem graças suficiente para ajudar na salvação de um certo número de almas, ela, no entanto, recebeu graças para ajudar na salvação de toda humanidade, é por isso comumente considerada a medianeira de todas as graças.

domingo, 28 de setembro de 2008

O Pecado; Machado de Assis; a política e o interior

Não há nada mais triste que uma alma que vive apartada de Deus. Debalde tenta sorrir e nisto apenas mostra os dentes amarelecidos por marcas indeléveis donde só a graça divina pode limpar e fazer o purpúreo tornar-se branco como a neve, como preconizava o profeta em tempos imemoriais. Não há nada mais pavoroso que uma cidade repleta de almas que tateiam na escuridão de vícios dos mais diversos matizes. A expressão dos indivíduos ganha um contorno misteriosamente estranho. O olhar se torna vidrado. Os movimentos denunciam que algo imperceptível faz comunhão com cada ato e pensamento que se manifesta. Em geral os homens ficam flácidos e seu olhar só fala arrogância. A situação é pavorosa e não há precedentes a que ponto se decaiu a natureza humana. Parece que nos esquecemos de nós mesmos e a virtude se tornou algo tão banal, tão desprezível que é cansativo só de pensar.

Machado de Assis é caracterizado pelo acentuado cepticismo em relação ao homem. Seu pessimismo talvez fosse além de Pirro e nesses cem anos de sua morte não há como não lembrar de alguns de seus livros nesses tempos modernos. Sempre ouvia de uma tia que é espírita e bem apegada a vaidades que estamos evoluindo. Ó evolução, parece que não chegaste a mim nem a meus pares do mundo moderno. Balela de espírita! Essa conversa de evolução espiritual é um dos maiores conformismo em relação à moral que se ensina descaradamente. Machado, que era espírita, cansou de falar da decadência moral do homem e nada propunha. Parece que o homem é podre até chegar o momento do “plus quântico”, quando teremos os tempos melhores. Esse conformismo budista é tão assassino quanto a atividade danosa dos maus.

Alguns homens se apercebem do valor moral. A política se torna um instrumento dos mais valiosos para se implementar uma forma de congregar os valores de um povo e traduzir os anseios populares através de trabalhos que enriqueçam a sociedade mediante a promoção de valores minimante éticos. É interessante como surgem abnegados aptos a solucionarem os problemas de uma cidade. A política deveria ser um fardo. Os governantes não deveriam perceber vencimentos. Os agentes políticos deveriam agir de maneira a gerir a administração pública só sendo custeado seus gastos básicos. Talvez, dessa forma, possamos antever não uma a parcimoniosa evolução, mas um progresso pelo menos na forma de governar. Infelizmente o sistema atual de representação é uma fabriqueta de gerar canalhas e patifes que se penduram na máquina pública. É um absurdo e causa revolta assistirmos de forma descarada como os assessores, secretários e puxa-sacos vêem a administração como catapulta de suas realizações personalíssimas enquanto a maioria da população fica à míngua.

No interior há graves pecados (sic); sorrisos amarelos; expressões faciais diabólicas. No período eleitoral músicas agonizam a cidade com palavras ofensivas; palavras desrespeitosas e de uma duvidosa qualidade. Perdemos totalmente o senso do ridículo. Mulheres se prostituem e a bacante é regada a álcool e drogas. Enquanto isso a bandeira na gávea tripudia e lançamos ao céu este borrão. Não temos machados pra cortamos esse mal pela raiz; nem Machado para rirmos da situação. A situação não tem graça e não sei até onde vai chegar. Ó Deus, tende piedade, nós não sabemos o que fazemos!
Antônio Manuel da Silva Filho
Catende, 27/09/2008

Defesa da Catedral de Neuquén

No dia 17 de agosto, na cidade de Neuquén, Argentina, uma passeata teve lugar. Uma marcha ligada ao "Encuentro Nacional de Mujeres", movimento de cunho feminista.
Como em manifestações similares houve ataques a igrejas localizadas no percurso das passeatas, um grupo de jovens católicos decidiu colocar-se em frente a uma Catedral pela qual passaria a tal marcha, querendo assim evitar qualquer tipo de ataque. Mesmo desaconselhados pelo bispo local os jovens seguiram adiante em seu intento, e se uniram para rezar o rosário. Eis o resultado:

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

LADAINHA LAURETANA - Mãe de Jesus Cristo


Contemplamos com essa avocação Maria como Mãe de Cristo, e por essa via a ação de Jesus sobre a Terra.

Maria é Mãe de Cristo, Nosso Profeta. Ele veio ao mundo anunciar a Boa-Nova, e não havia uma vez sequer que Se pronunciasse que não fosse para tratar dos caminhos para a Salvação, que Ele, como Deus, veio para trazer-nos. Houve mesmo entre os judeus quem o reconhecesse como profeta: “Este é mesmo o profeta que devia vir ao mundo” (Jo 6, 14). As coisas que ensinava foram para todos, pois havia ordenado aos apóstolos "Ide e ensinai a todos os povos, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo" (Mt 28, 19).

Maria é Mãe de Cristo, Nosso Rei. Rei de um Reino que não é deste mundo, assim como disse a Pilatos. A Igreja por Ele estabelecida haverá de durar até o fim dos tempos, sem que os portões do inferno sobre ela prevaleçam. É então nosso dever agir na Esperança desse Reino, (uma Esperança não só “informativa”, mas “perfomativa”, como nos ensina o Santo Padre Bento XVI, na Encíclica Spe Salvi) como súditos desse Rei.

Maria é Mãe de Cristo, Nosso Sumo Sacerdote. Nosso Sacerdote, que também enquanto vítima ofereceu a si mesmo pela expiação de nossos pecados. Ele continua a Si entregar diariamente por nós na Missa, de forma incruenta, pelas mãos do padre (In Persona Christi). E assim será enquanto durar sua Igreja, ou seja, até o fim dos tempos.

Na Missa segundo o chamado Rito Tridentino (forma extraordinária do Rito Romano), orações são proclamadas em três línguas: o grego, o latim e o hebraico; assim como nessas três línguas estava escrita a sentença de Jesus no alto da cruz. O grego é referente à ação de Cristo como Profeta, pois o grego era, em seu tempo, a língua tida por “universal”, algo como o inglês é dito ser hoje; O latim era a língua do Império Romano e, portanto, referente à ação de Cristo como Rei, pois é a língua dos súditos, ou cidadãos do Império; E o hebraico era a língua utilizada para a oração pelos judeus, contemplando assim à ação de Cristo como Sacerdote. É talvez justo, realmente, que a língua que mais ocupe espaço na liturgia seja o latim, pois sendo Jesus Rei exerce soberania sobre o restante, a língua que melhor expressa isso deveria ser a mais presente. Alguém poderia questionar se não seria assim o poder temporal superior ao espiritual, mas basta recordar que o Reino de Cristo é propriamente espiritual, portanto não há contradição.

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

São Míticos os Evangelhos? - Parte Final

Por René Girard(continuação)

O Cristianismo, no entanto, não é redutível a um esquema lógico. A revelação da vitimização unânime não pode envolver uma comunidade por inteiro – caso contrário não haveria ninguém para revelá-la. Pode apenas ser a conquista de uma ousada minoria que desafia a verdade oficial, e ainda pequena demais para que prevenir a um quase unânime episódio de vitimização ocorra. Tal minoria é, entretanto, extremamente vulnerável e tende normalmente a ser engolida pelo contágio mimético. Humanamente falando, a revelação é uma impossibilidade.

Na maioria dos textos bíblicos, a minoria dissidente permanece invisível, mas no Evangelho coincide com o grupo dos primeiros Cristãos. Os Evangelhos dramatizam a incapacidade humana ao insistir na inabilidade dos discípulos em resistir à multidão durante a Paixão (especialmente Pedro, que nega Jesus três vezes no pátio dos Sumos Sacerdotes). Ainda assim, após a Crucifixão – que deveria ter piorado a situação – esse patético punhado de fracos subitamente passam a fazer o que eram incapazes enquanto Cristo ainda estava lá para ajudá-los: corajosamente proclamam a inocência da vítima em clara afronta a seus algozes, tornam-se os destemidos apóstolos e missionários da Igreja primitiva.

A Ressurreição é responsável por essa mudança, claro, mas mesmo esse extraordinário milagre não seria suficiente para transformar esses homens completamente se tivesse sido uma maravilha isolada, ao invés da primeira manifestação do poder redentor da Cruz. Uma análise antropológica nos permite afirma isso, assim como a revelação da vítima Cristã difere das revelações míticas porque não se enraíza na ilusão de um bode-expiatório culpado, então a Ressurreição Cristã difere das míticas já que suas testemunhas são as pessoas que no final superam o contágio de vitimização (assim como Pedro e Paulo), e não as pessoas que se entregam a ele (como Herodes e Pilatos). A Ressurreição Cristã é indispensável para a simples revelação antropológica de vitimização unânime e da desmistificação das ressurreições míticas.

A morte de Cristo não é fonte de graça porque o Pai foi “vingado” por ela, mas porque Jesus viveu e morreu de forma que, se adotado por todos, iria espantar os escândalos e a vitimização decorrente desses escândalos. Jesus viveu de modo como todos os homens devem viver visando a união com um Deus Cuja natureza ele revelou.

Obedecendo perfeitamente às prescrições anti-miméticas que recomendou, Jesus não tem a menor tendência à rivalidade mimética e à vitimização. E ele morre, paradoxalmente, devido a essa perfeita inocência. Ele torna-se vítima do processo do qual libertará a humanidade. Quando um homem sozinho segue às prescrições do Reino de Deus parece uma provocação intolerável a todos aqueles que não seguem, e esse homem automaticamente designa-se como vítima de todos os homens. Esse paradoxo revela por completo “o pecado do mundo”, a incapacidade do homem em livrar-se de seus modos violentos.

Durante a vida de Cristo a dissidência minoritária daqueles que resistem ao contágio mimético limitava-se a um só homem, o próprio Cristo – que é simultaneamente a mais arbitrária das vítima (porque ele merece sua morte violenta menos do que todos) e a vítima menos arbitrária (porque sua perfeição é um insulto imperdoável à violência do mundo). Ele é o bode-expiatório da escolha, o cordeiro de Deus que todos escolhemos inconscientemente mesmo quando não sabendo estar escolhendo vítima alguma.

Quando Cristo morre só, abandonado pelos apóstolos, os perseguidores são unânimes mais uma vez. Se os Evangelhos estivessem tentando revelar um mito, a verdade que Jesus havia tentado revelar seria enterrada de uma vez por todas e o palco estaria armado para a triunfal revelação da vítima mitológica como a fonte divina da reordenação social através da “boa” violência do bode-expiatório que põe fim a toda má violência mimética que ameaçou a sociedade.

Se tal mito de morte e ressurreição não ocorre dessa vez – se Satanás no final é derrotado – a causa imediata é uma súbita coragem nos discípulos. Mas essa força não veio deles mesmos. Ela claramente é emanada da morte de Cristo, que havia antes anunciado que após sua morte eles seriam auxiliados pelo Espírito Santo da verdade. Essa é uma razão, creio eu, o Evangelho de João chama o Espírito de Deus de Paráclito, uma palavra do grego que simplesmente significa o advogado de defesa, o defensor de um acusado perante um tribunal. O Paráclito é, entre outras coisas, aquele que faz oposição ao Acusador: O Espírito de Verdade que dá a refutação definitiva às mentiras de Satanás. É por isso que Paulo escreve, em Corítinos 2, versículos 7 e 8: “Ensinamos uma coisa misteriosa e escondida: a sabedoria de Deus, aquela que ele projetou desde o princípio do mundo para nos levar à sua glória. Nenhuma autoridade do mundo conheceu tal sabedoria, pois se a tivessem conhecido não teriam crucificado o Senhor da glória”.

A verdadeira Ressurreição é baseada nas mentiras míticas da vítima culpada que merece morrer, mas sim na retificação dessa mentira, que vem do verdadeiro Deus e que reabre canais de comunicação que a própria humanidade fechou em seu auto-aprisionamento nas suas culturas violentas. Só a Graça Divina pode explicar porque, após a Ressurreição, os discípulos puderam transformar-se em uma minoria dissidente em um oceano de vitimização – pudera, entender o que antes não compreendiam: a inocência não só de Jesus, mas de todas as vítimas de assassinatos análogos à Paixão desde a fundação do mundo.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

LADAINHA LAURETANA - Santa Virgem das Virgens

Com a formação da Nova Aliança, a pureza representada pela virgindade foi elevada. E em decreto do Concílio de Trento, temos como Dogma de Fé que a virgindade é um estado superior ao que proporcione à união carnal. A maternidade entre as mulheres judias era preferida à virgindade, tanto que era grande desgraça a infertilidade, desde antes da Anunciação vemos, no entanto, delinear-se os princípios da Nova Aliança tendo Maria optado pela castidade e assim permanecendo por toda vida.

Sua pureza como virgem resplandeceu, e de Deus era precioso tesouro, “Como açucena entre espinhos/ é a minha amada entre as donzelas” (Ct 2,2). E sua pureza a fez exemplo: “É melhor não ter filhos e possuir a virtude, porque a memória da virtude é imortal, e tanto Deus como os homens a conhecem” (Sb 4,1).

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

São Míticos os Evangelhos? - Parte IV

> Por René Girard(continuação)


No lugar de culpar as vítimas, os Evangelhos culpam os algozes. O que os mitos sistematicamente escondem, a Bíblia revela.

A diferença não é meramente “moralística” (como acreditava Nietzsche) ou questão de escolha subjetiva; é uma questão de veracidade. Quando a Bíblia e os Evangelhos dizem que a vítima deveria ser poupada, eles não “têm pena” deles simplesmente. Eles furam a ilusão da vitimização unânime dos mitos fundacionais usados como uma solução para crises e instrumento de reorganização das comunidades humanas.

Quando examinamos os mitos a luz dos Evangelhos, até mesmo suas características mais enigmáticas fazem-se inteligíveis. Consideremos, por exemplo, as deficiências e anormalidades que parecem sempre se infligirem sobre os heróis míticos. Édipo manca, assim como boa parte dos heróis e divindades. Outros possuem uma só perna, ou um braço, ou um olho, ou são cegos, corcundas, etc. Outros são estranhamente altos ou estranhamente baixos. Alguns têm uma asquerosa doença cutânea, ou odores corporais tão intensos que afligem seus vizinhos. Em uma multidão, mesmo as menores deficiências e singularidades vão causar desconforto e, problemas devem aparecer, seus possuidores são passíveis de serem selecionados como vítimas. A preponderância de aleijados e portadores de anomalias entre os heróis míticos deve ser uma conseqüência estatística do tipo de vitimização que gera mitologia. Assim como a preponderância de “estranhos”: em todos os grupos isolados, estrangeiros produzem uma curiosidade que pode rapidamente transformar-se em hostilidade durante um pânico. A violência mimética é essencialmente desorientada; desprovida de causas válidas, ela seleciona vítimas de acordo com minúsculos sinais ou pseudocausas que podemos identificar como sinais preferenciais de vitimização.

Na Bíblia, as falsas ou insignificantes causas de violência mítica são efetivamente na simples e contundente afirmação, Odiaram-me sem motivo (João 15, 25), na qual Jesus cita e praticamente resume o Salmo 35 – um dos “salmos de bode-expiatório” que literalmente vira às avessas as justificações das turbas enfurecidas. Ao invés da multidão pronunciar-se justificando a violência com suas causas que a legitimam, a vítima fala denunciando que tais causas não existem.

Para explicar mitos arcaicos, precisamos apenas seguir o método que Jesus recomenda e substituir esse sem motivo pelas falsas causas míticas.

No Império Bizantino, pelo que parece, a tragédia de Édipo era lida como uma analogia a Paixão Cristã. Se verdade, aqueles primeiros antropólogos estavam aproximando-se do real problema pelo fim errado. Sua redução dos Evangelhos a mitos comuns apagou a luz dos Evangelhos com mitologia.

Em ordem de bem suceder, devemos iluminar a obscuridade dos mitos com a inteligência dos Evangelhos.

Se vitimização unânime reconcilia e reordena sociedades em proporção direta a sua ocultação, então deve perder a efetividade em direta proporção a sua revelação. Quando a mentira mítica é denunciada publicamente, a polarização dos escândalos deixa de ser unânime e a catarse social enfraquece e desaparece. No lugar de reconciliar a comunidade, a vitimização deve intensificar as divisões e dissidências.

Essas perturbadoras conseqüências deveriam ser sentidas nos Evangelhos, e, de fato, são. No Evangelho de João, por exemplo, tudo que Cristo faz ou diz possui um efeito divisório. O autor ao contrário de nos ocultar esse fato, repetidamente nos chama a atenção para ele. Assim como em Mateus 10, versículo 34, Jesus diz, “Eu não vim para trazer a paz, mas sim a espada”. Se a paz que a humanidade experimentou foi sempre fruto da vitimização inconsciente, a consciência que trazem os Evangelhos para o mundo pode apenas destruí-la.

A imagem de Satanás – “um mentiroso e o pai da mentira” (João 8, 44) – também expressa essa oposição entre a obscuridade mítica e a revelação evangélica da vitimização. A Crucifixão como derrota de Satanás, e a predição de Jesus de que Satanás “será destruído” (Marcos 3, 26), implica menos um mundo ordenado que um em que Satanás esteja a solta. Ao contrário de concluir com a tranqüilidade harmoniosa dos mitos, o Novo Testamento abre uma perspectiva apocalíptica, tanto na conclusão dos Evangelhos como no Livro da Revelação (Apocalipse). Para alcançar “a paz que supera todo entendimento”, a humanidade deve abrir mão de sua velha, paz parcial fundada na vitimização – e um grande distúrbio pode ser esperado. A dimensão apocalíptica não é um elemento estranho que deve ser extirpado do Novo Testamento no intuito de “melhorar” o Cristianismo, é parte integrante da revelação.

Satanás tenta silenciar Cristo com o mesmo processo que Jesus subverte. Ele tem razões para acreditar que seu antigo truque mimético deveria produzir, tendo Jesus como vítima, o que sempre produziu no passado: mais um mito ordinário, um sistema fechado de mentiras míticas. Ele tem boas razões para acreditar que o contágio mimético contra Cristo mostrar-se-á mais uma vez irresistível e a revelação será enterrada. As expectativas de Satanás não se cumprem. Os Evangelhos fazem o mesmo que a Bíblia fez anteriormente, reabilitando um profeta vitimizado, uma vítima falsamente acusada. Mas eles também universalizam essa reabilitação. Eles mostram que desde a fundação do mundo as vítimas de assassinatos análogas a Paixão foram vítimas do mesmo contágio mimético que Jesus. Os Evangelhos fazem a revelação completa. Eles dão a denúncia bíblica da idolatria uma concreta demonstração de como falsos deuses e seus violentos sistemas culturais são engendrados. Essa é a verdade que falta a mitologia, a verdade que subverte o violento sistema desse mundo. Se os Evangelhos fossem míticos eles mesmos, não poderiam prover o conhecimento que desmistifica a mitologia.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

LADAINHA LAURETANA - Santa Mãe de Deus

Na tradução para o português somos levados a crer que tal título não está em lugar adequado, pois sendo Mãe de Deus, faria mais sentido encontrar-se na segunda parte da ladainha na qual são destacadas as qualidades maternais de Maria. Porém, temos que o sentido advindo da avocação no latim, Sancta Dei Genitrix, não é tanto de mãe no como se expressa na segunda parte, mas de Genitora, ou Genetriz de Deus, pois a essa avocação não é referido o princípio maternal propriamente, mas mais diretamente a qualidade de formadora, ou seja, a descendência de Cristo, Deus humanado, do ventre de Maria.

Não se passa que Deus tenha sido formado no seio de Maria, pois Deus é eterno. Vemos, no entanto, O anjo dizer a Maria que “O Espírito Santo virá sobre você, e a força do Altíssimo a cobrirá com sua sombra. Por isso, o Santo que vai nascer de você será chamado Filho de Deus” (Lc 1,35). Assim como ao visitar St. Isabel, sua prima, Maria ouve dela “Como posso merecer que a mãe do meu Senhor venha me visitar?” (Lc 1,43). Dessa forma ao dizermos ser Maria a Mãe de Deus, estamos em verdade afirmando a divindade de Cristo.

Temos então não que a divindade tenha sido gerada no ventre de Maria, mas dela nasceu Cristo que é o próprio Deus. Através dessa avocação percebemos como a dignidade dela é totalmente dependente da dignidade de Deus, e sendo ela a criatura com união mais próxima do Bem, é sua dignidade próxima do infinito. Mas ainda criatura é também próxima de nós, e dessa maneira atua como perfeita medianeira entre Deus e os homens; Nossa perfeita intercessora.

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

São Míticos os Evangelhos? - Parte III


Por René Girard
(continuação)



O papel de Satanás, a personificação dos escândalos, nos ajuda a compreender a concepção mimética dos Evangelhos. Para a pergunta Como é que Satanás pode expulsar Satanás? (Marcos 3, 23), a resposta é a vitimização unânime.

Por um lado, Satanás é o instigador de escândalo, a força que desintegra as comunidades; por outro, ele é a resolução de escândalo por meio da vitimização unânime. Essa habilidade de última instância permite ao príncipe desse mundo resgatar suas possessões no último momento, quando estão extremamente ameaçados por sua desordem. Sendo ao mesmo tempo um princípio de desordem e um princípio de ordem, Satanás estás realmente dividido contra si mesmo.

A famosa representação do assassinato mimético de João Batista ocorre – em Marcos e Mateus – como um curioso flashback. Começando com o relato de Herodes ávido por controlar o rumor da ressurreição de João, e apenas depois voltando no tempo para narrar a morte de João, Marcos e Mateus revelam a origem a compulsiva crença de Herodes em sua própria participação no assassinato. Os evangelistas dão um passageiro, mas precioso, exemplo de gênesis mimético – do poder ordenador da violência, de sua habilidade de fundar cultura. A Crença de Herodes é vestigial, com certeza, mas o fato de dois Evangelhos mencionarem o fato confirma, em minha opinião, a autenticidade evangélica da doutrina que liga mitologia à vitimização mimética.

Os Cristãos modernos ficam habitualmente desconfortáveis com essa falsa ressurreição que parece assemelhar-se à verdadeira, mas Marcos e Mateus obviamente não compartilham desse embaraço. Ao invés de minimizar essas similaridades, eles atraem nossa atenção para elas, assim como Lucas atrai nossa atenção à semelhança entre a comunhão Cristã e a profana reconciliação de Herodes e Pilatos como resultado da morte de Cristo. Os evangelistas vêem algo muito simples e fundamental que nós mesmos deveríamos ver. Assim que compreendemos a semelhança da violência na Bíblia e nos mitos, podemos então entender como a Bíblia não é mítica – como a reação à violência exposta na Bíblia difere radicalmente da reação exposta pelos mitos.

Começando pela história de Caim e Abel, a Bíblia proclama a inocência da vítima mítica e a culpa de seus algozes. Vivendo após a anunciação dos Evangelhos, nós achamos isso natural e nunca paramos para analisar que nos mitos clássicos o oposto é verdadeiro: os perseguidores parecem sempre ter uma causa válida para perseguir suas vítimas. Os mitos Dionisíacos relata até mesmo os mais cruéis linchamentos como legítimos. Penteu é morto legitimamente por sua mãe e irmãs, nas Bacantes, já que seu desprezo pelo deus Dionísio é falta grave o suficiente para penalizá-lo com a morte. Édipo também mereceu seu destino. De acordo com o mito, ele realmente matou seu pai e se casou com sua mãe, e é de fato responsável pela praga que assolou Tebes. Expulsá-lo não era apenas um ato permitido, mas um dever religioso.

Mesmo que não sendo acusados de crime algum, as vítima míticas são ainda supostas de morrer por uma boa causa, e sua inocência não torna suas mortes menos legítimas. No mito Védico de Purusha, por exemplo, não há menção a ação errada alguma – mas o despedaçamento da vítima não deixa de ser um ato divino. Os pedaços do corpo de Purusha são necessários para criar as três grandes castas, o esteio da sociedade Indiana. No mito, a morte violenta é sempre justificada.

Se a violência dos mitos é puramente mimética – se é como a Paixão, como diz Jesus – todas essas justificativas são falsas. E mais, como são sistematicamente reversas à verdadeira distribuição de inocência e culpa, esses mitos não podem ser meramente ficcionais. São mentiras certamente, mas a mentira especifica atraída pelo contágio mimético – a falsa acusação que se espalha mimeticamente entre uma comunidade humana perturbada no clímax, quando escândalos polarizam-se contra um só bode-expiatório cuja morte reúne a comunidade. A máquina fabricante de mitos é o contágio mimético que desaparece por trás do mito gerado.

Não há nada de secreto a respeito das justificações abraçadas pelos mitos; a acusação estereotipada de uma turba violenta está sempre disponível quando se busca um bode-expiatório. Nos Evangelhos, entretanto, o maquinário do bode-expiatório faz-se completamente visível porque encontra oposição e não mais opera eficientemente. A resistência ao contágio mimético evita o mito de tomar forma. A conclusão à luz dos Evangelhos é inescapável: mitos são a voz das comunidades que unanimemente rendem-se ao contágio mimético de vitimização.

Essa interpretação é reforçada pelos otimistas encerramentos dos mitos. A conjunção da culpa da vítima e da reconciliação da comunidade é freqüente demais para ser fortuito. A única explicação possível é a distorcida representação da vitimização unânime. O processo violenta não é efetivo se não engana a todas as testemunhas, e a prova de que o é, no caso dos mitos, é a harmoniosa e catártica conclusão, enraizada no perfeitamente unânime assassinato.

Escutamos atualmente, que, por trás de cada texto e cada evento, há um infinito número de interpretações, todas mais ou menos equivalentes. A vitimização mimética faz a absurdidade dessa visão manifesta. Apenas duas reações possíveis existem ao contágio mimético, e elas fazem uma assombrosa diferença. Ou nos rendemos à multidão perseguidora, ou resistimos e restamos sozinhos. A primeira opção é uma unânime auto-engano que chamamos mitologia.

A segunda é o caminho para a verdade seguido pela Bíblia.


quarta-feira, 20 de agosto de 2008

LADAINHA LAURETANA - Santa Maria

O nome da Santíssima Virgem, evocado nesse primeiro título, guarda em si já um número de qualidades admiráveis. Vejamos os significados de tão belo nome:

1.Seu nome significa “Senhora”, que curiosamente é uma outra palavra a qual vemos ter perdido com o tempo certo sentido inicial. Hoje muitas mulheres por uma vaidade boba não gostam de ser chamadas de senhoras, um título que expressa grande cordialidade, assim como em tempos já longínquos os homens em mostra de cavalheirismo ao apresentar-se emendavam ao seu próprio nome o adjetivo de “humilde servo”, ou então apresentavam-se “a seu serviço”.
Senhora, no caso, é referente ao poder senhorial, ou seja, assim como existiam senhores feudais e senhores de engenho cujo poder de mando cobria toda a terra a eles pertencente, Maria exerce sobre os homens soberania. Do francês podemos ver que a expressão de cordialidade referente às mulheres é madame, formado pela junção de duas palavras distintas, ma que significa minha, e dame que significa senhora, ou seja, é sinal distintivo de etiqueta a sujeição de chamar às mulheres de “minhas senhoras”. Cristo, porém, ainda preso à cruz, deu-nos Maria por Mãe, e assim fazendo, sujeitou o mundo a seu sublime senhoril. E eis, portanto, a grandeza de reconhece-la como Nossa Senhora, posto que é grande sinal de amor a Deus e de humildade.

2.O segundo significado que vemos trazer em tão doce nome é o de “Estrela do Mar”. Era costume daqueles que se aventuravam no mar guiarem-se pelas estrelas; através delas viam seu caminho no céu. Jesus, pois, fez dos apóstolos “pescadores de homens” e a Sua Igreja edificou sobre a pedra, que era Pedro. É fácil encontrarmos relatos a chamar a Igreja de “Barca de Pedro”, que segue guiada pela Estrela que brilha sobre o mar, a Estrela que revela o Caminho. Essa Estrela é Maria a servir-nos de exemplo, a guiar-nos na tribulação.
Desde a profecia de Simeão fez-se a vida de Maria um mar de amargura, sua alma transpassada por sete espadas, sete dores das mais profundas. Ela que atravessou esse mar com candura, sem nunca pecar, há de nos guiar em também atravessá-lo em direção à Vida.

Seu nome é tão doce e poderoso que alegra os anjos e atormenta os demônios, pois nem mesmo eles podem negar sua majestade.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

São Míticos os Evangelhos? - Parte II

Por René Girard (continuação)
A tradicional tradução inglesa de stumblig block (pedra de tropeço) é muito superior às tímidas traduções recentes, pois do grego skandalon designa um obstáculo incontornável que de alguma forma torna-se mais atrativo (assim como repulsivo) cada vez que nela tropeçamos. A primeira vez que Jesus predisse sua violenta morte (Mateus 16, 21-23), sua resignação horroriza Pedro, que tenta incutir alguma ambição mundana em seu mestre: Ao invés de imitar a Cristo, Pedro quer ser imitado por ele. Se dois amigos imitam as ambições um ao outro, ambos desejam o mesmo. E se não podem dividir esse objeto de desejo, competirão por ele, cada um transformando-se simultaneamente em modelo e obstáculo do outro. O desejo competitivo intensifica-se enquanto modelo e obstáculo se reforçam mutuamente, e segue uma escalada de rivalidade mimética; admiração dá vazão para indignação, ciúmes, inveja, ódio, e, por último, violência e vingança. Se Jesus houvesse imitado a ambição de Pedro, os dois começariam assim uma competição pela liderança por um politizado “movimento de Jesus”. Sentindo o perigo, Jesus veementemente interrompe Pedro: “Fique longe de mim, Santanás! Você é pedra de tropeço (skandalon) para mim”.
O quão mais nossos modelos impedem nossos desejos, mais fascinantes eles se tornam enquanto modelos. Escândalos podem ser sexuais, sem dúvida, porém não são mais uma questão de sexo do que ambição mundana. Devem ser definidos em termos não de seus objetos, mas da intensificação de seus obstáculos/modelos – sua rivalidade mimética que é a pecaminosa dinâmica do conflito humano e sua miséria psíquica. Se o problema da rivalidade mimética nos escapa, podemos confundir as prescrições de Cristo com uma utopia social. A verdade é que escândalos são uma ameaça tamanha que nada deveria ser poupado em evitá-los. Com a primeira deixa, nós deveríamos abandonar o objeto disputado para nossos rivais e consentir com suas mais ultrajantes exigências; nós deveríamos “oferecer a outra face”.
Se escolhemos Jesus como modelo, simultaneamente escolhemos seu próprio modelo, Deus Pai. Não possuindo desejo de apropriação algum, Jesus proclama a possibilidade de liberdade dos escândalos. Mas se escolhemos modelos possessivos nos achamos em escândalos intermináveis, porque nosso real modelo é Satanás. Um sedutor que nos tenta com desejos mais passíveis de gerar rivalidades, Satanás nos impede de alcançar o que simultaneamente nos incita a querer. Ele se transforma em um diabolos (outra palavra que designa o obstáculo/modelo da rivalidade mimética). Satanás é skandalon personificado, assim como explicita Jesus em sua repreensão a Pedro.
Já que a maioria dos seres humanos não segue Jesus, escândalos devem acontecer (Matues 18, 17), proliferando de modos que deveria por em risco a sobrevivência coletiva da humanidade – entendemos enfim o terrível poder da intensificação do desejo mimético, nenhuma sociedade parece capaz de enfrentá-lo. E ainda, apesar de muitas sociedades padecerem, novas sociedades conseguem nascer, e algumas poucas estabelecidas conseguem encontrar meios de sobreviver ou regenerar-se. Alguma força de resistência parece operar, não poderosa o bastante para acabar com os escândalos de uma vez por todas, mas ainda sim suficiente para amenizar seu impacto e mantê-los sobre algum controle.
Essa força de resistência é, acredito eu, o bode-expiatório mitológico – a vítima sacrifical do mito. Quando proliferam os escândalos, os homens se tornam tão obcecados por seus rivais que perdem de vista os objetos pelo qual competem e passam a focar-se ferozmente uns nos outros. Assim como o empréstimo do objeto do modelo muda para o empréstimo do ódio do rival, a mimese aquisitiva transforma-se em uma mimese de antagonistas. Mais e mais indivíduos polarizam contra cada vez menos inimigos até, que no fim, reste apenas um. Como todos acreditam na culpa da última vítima, todos voltam-se contra ele – e como essa vítima está agora isolada e indefesa, podem assim agir sem perigo de retaliação. Como resultado, nenhum inimigo existe mais para ninguém da comunidade. Escândalos evaporam e a paz retorna – por um tempo.
A preservação social contra a violência ilimitada de escândalos se sustenta na coalizão contra uma única vítima e sua violência limitada. A violenta morte de Jesus é, humanamente falando, um exemplo desse estranho processo. Antes que comece, Jesus adverte seus discípulos (e especialmente Pedro) que eles irão “escandalizar-se” por ele (Marcos 14, 27). Esse uso de skandalizein sugere que a força mimética em ação na violência de todos-contra-um é a mesma violência que ocorre na rivalidade mimética entre indivíduos. Ao prevenir uma revolta e dispersar a multidão, a Crucifixão é um exemplo de uma vitimização catártica. Um fascinante detalhe nos Evangelhos deixa claro os efeitos catárticos do assassinato mimético – e nos permite a distinção dos efeitos da Crucifixão Cristã.
Ao fim de sua narração da Paixão, Lucas escreve, “Nesse dia, Herodes e Pilatos ficaram amigos, pois antes eram inimigos” (23, 12). Essa reconciliação externamente assemelha-se a comunhão Cristã – como originou-se na morte de Cristo – e mesmo assim não tem nada a ver com ela. É um efeito catártico enraizado no contágio mimético.
Os perseguidores de Jesus percebem que influenciam uns aos outros mimeticamente. A ignorância deles não anula sua responsabilidade, mas a diminui: “Pai, perdoa-lhes! Eles não sabem o que estão fazendo!” (Lucas 23, 34). Uma declaração paralela em Atos 3, versículo 17 que isso deve ser interpretado literalmente. Pedro atribui à ignorância o comportamento da multidão e de seus líderes. Sua experiência pessoal da mimética compulsiva que possuí as massas o previne de ver-se como imune à violência contagiosa da vitimização.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

LADAINHA LAURETANA - Introdução

Escancarando de uma vez por todas o viés católico do blog gostaria de iniciar paralelamente à apresentação do texto “São Míticos os Evangelhos?” um pequeno estudo a respeito da Ladainha Lauretana. Aos ateus, agnósticos e comunistas esotéricos que por ventura acessarem o “Lumen et Dulcedo”, paciência.

O passar do tempo é por vezes impiedoso. São poucos os de muita idade que dão graças à sabedoria, preferindo queixar-se dos joelhos e das costas que doem com o frio. Não são poupados sequer os significados das coisas sagradas, e assim veio o tempo para desnaturar o entender das ladainhas. Uma oração digníssima e de louvor grandioso, cujo nome transformou-se sinônimo de algo enfadonho e cansativo. A palavra ladainha vem de litania, que significa oração de invocação ou intercessão.

O reto entendimento das coisas nos faz amar àquelas que nos mostram ser boas. Assim sendo faz-se mister a compreensão das vontades expressas na oração, nesse caso específico da ladainha, a Ladainha Lauretana. Percebendo a honra que trazem os títulos que dirigimos à Santíssima Virgem, seu entendimento transforma o dito marasmo do que se habituou chamar por ladainha em uma movimentação de graciosidade da alma.

A Ladainha Lauretana ou Ladainha da Santíssima Virgem foi composta quando há pouco se encerrava a Idade Média. Guarda esse nome devido à aprovação do Papa Sixto V, no ano de 1587, dada à ladainha habitualmente utilizada pelos fiéis que freqüentavam a Santa Casa, na cidade de Loreto. Com essa aprovação, as demais ladainhas acabaram por ser suprimidas. Alguns dos títulos que constam atualmente foram acrescentados solenemente à ladainha original por uma série de Papas ao longo da história.

A Ladainha da Santíssima Virgem segue a seguinte estrutura:


1. A santidade de Maria: Primeira parte é composta por três avocações, que destacam: a santidade de Maria como pessoa, seu papel como Mãe (genitora) de Jesus Cristo e sua vocação como virgem.
2. Maria, a Mãe: Segunda parte composta por doze avocações referentes à maternidade de Maria.
3. Maria, a Virgem: Terceira parte formada por seis títulos honra Maria como virgem, tratando não só de seus méritos como tal, mas também da eficácia de sua virgindade.
4. Símbolos de Maria: Depois se seguem treze avocações simbólicas, em sua maioria retirados do Antigo Testamento e referentes a N.Sra, evidenciando suas virtudes e seu papel como co-redentora da humanidade.
5. Maria, a Intercessora: Os quatros títulos seguintes exaltam o papel de Maria como intercessora nas obras de misericórdia espirituais e corporais.
6. Maria, a Rainha: E no último trecho da ladainha exaltamos por meio de treze títulos Maria como Rainha.


Eis a oração na integra:

Senhor, tende piedade de nós.
Jesus Cristo, tende piedade de nós.
Senhor, tende piedade de nós.
Jesus Cristo, ouvi-nos.
Jesus Cristo, atendei-nos.
Pai celeste que sois Deus,
tende piedade de nós.
Filho, Redentor do mundo, que sois Deus,
tende piedade de nós.
Espírito Santo, que sois Deus,
tende piedade de nós.
Santíssima Trindade, que sois um só Deus,
tende piedade de nós.
Santa Maria, rogai por nós.
Santa Mãe de Deus,
Santa Virgem das Virgens,
Mãe de Jesus Cristo,
Mãe da divina graça,
Mãe puríssima,
Mãe castíssima,
Mãe imaculada,
Mãe intacta,
Mãe amável,
Mãe admirável,
Mãe do bom conselho,
Mãe do Criador,
Mãe do Salvador,
Virgem prudentíssima,
Virgem venerável,
Virgem louvável,
Virgem poderosa,
Virgem clemente,
Virgem fiel,
Espelho de justiça,
Sede de sabedoria,
Causa da nossa alegria,
Vaso espiritual,
Vaso honorífico,
Vaso insígne de devoção,
Rosa mística,
Torre de David,
Torre de marfim,
Casa de ouro,
Arca da aliança,
Porta do céu,
Estrela da manhã,
Saúde dos enfermos,
Refúgio dos pecadores,
Consoladora dos aflitos,
Auxílio dos cristãos,
Rainha dos anjos,
Rainha dos patriarcas,
Rainha dos profetas,
Rainha dos apóstolos,
Rainha dos mártires,
Rainha dos confessores,
Rainha das virgens,
Rainha de todos os santos,
Rainha concebida sem pecado original,
Rainha elevada ao céu,
Rainha do sacratíssimo Rosário,
Rainha da paz,

Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo,
perdoai-nos Senhor.
Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo,
ouvi-nos Senhor.
Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo,
tende piedade de nós.

V. Rogai por nós, Santa Mãe de Deus,
R. Para que sejamos dignos das promessas de Cristo.

Oremos.
Senhor Deus, nós Vos suplicamos que concedais aos vossos servos perpétua saúde de alma e de corpo; e que, pela gloriosa intercessão da bem-aventurada sempre Virgem Maria, sejamos livres da presente tristeza e gozemos da eterna alegria.
Por Cristo Nosso Senhor.
Amém.

Veremos um pouco do significado das avocações nas próximas postagens

domingo, 17 de agosto de 2008

São Míticos os Evangelhos? - Parte I

Numa tentativa de retomar as atividades, há já certo tempo inexistentes do "Lumen et Dulcedo", gostaria de oferecer algo um tanto diferente. No caso uma tradução de próprio cunho de um pequeno artigo intitulado "São Míticos os Evangelhos?", de autoria do antropólogo René Girard, professor emérito de língua francesa, literatura e civilização na Universidade de Stanford, tem entre suas principais obras A Violência e o Sagrado e Um longo argumento do princípio ao fim. Por questões práticas apresentarei o texto dividido em partes por meio de múltiplas postagens. O texto pode ser encontrado na integra em inglês no seguinte endereço: http://www.leaderu.com/ftissues/ft9604/girard.html

Por R
ené Girard


Desde os primórdios do Cristianismo, semelhanças dos Evangelhos a certos mitos foram utilizadas como argumento contra a fé Cristã. Quando os apologetas pagãos a serviço do panteísmo oficial do Império Romano negaram que o mito da morte e ressurreição de Jesus diferia significantemente dos mitos de Dionísio, Osíris, Adonis, Attis etc., eles falharam em conter a crescente maré Cristã. Nos últimos duzentos anos, no entanto, como os antropólogos descobriram por todo o mundo mitos fundacionais que demonstravam similaridades à Paixão e Ressurreição de Cristo, a noção de Cristianismo enquanto mito parece ter se alastrado – mesmo entre os que se dizem cristãos.

Começando por alguma violenta crise cósmica ou social, e culminando no sofrimento de uma misteriosa vítima (comumente pelas mãos de uma multidão furiosa), todos esses mitos encerram com o triunfal retorno do sofredor, assim revelado como uma divindade. O tipo de pesquisa antropológica corrente antes da II Guerra Mundial – na qual teóricos esforçavam-se em contabilizar as semelhanças entre mitos – é lembrado como um desiludido fracasso “metafísico” pela maioria dos antropólogos hodiernos. Esse fracasso não parece, no entanto, ter enfraquecido o espírito cético cientificista, mas sim ter enfraquecido, de alguma forma misteriosa, a plausibilidade dos clamores dogmáticos da religião que os antigos teóricos esperavam suplantar: se a ciência ela mesma não pode formular verdades a respeito da natureza humana, então a religião – sendo manifestamente inferior à ciência – deve ter ainda menos valor do que tínhamos suposto.

Esse é o estado intelectual que o pensador cristão contemporâneo tem que enfrentar quando lê as Escrituras. A Cruz é incomparável até onde sua vítima é o Filho de Deus, mas em todos os outros aspectos é um evento humano. Uma análise daquele evento – explorando os aspectos antropológicos da Paixão, que não podemos negligenciar se temos por sério o dogma da Encarnação – não apenas revela a falsidade do ceticismo antropológico contemporâneo sobre a natureza humana. Como também descredita completamente a noção de que o Cristianismo é, em algum sentido, mitológico. Os mitos do mundo não revelam um modo de interpretar os Evangelhos, mas exatamente o inverso: os Evangelhos revelam a nós o modo de interpretar os mitos.

Jesus, obviamente, compara sua própria história a outras quando diz que sua morte será como a dos profetas: “a fim de que se peçam contas a esta geração do sangue de todos os profetas, derramado desde a criação do mundo, desde o sangue de Abel até o sangue de Zacarias, que foi morto entre o altar e o santuário” (Lucas 11, 50-51). O que devemos nos questionar é o que realmente quer dizer a palavra como nesse caso? Na morte que de forma mais impressionante se assemelha à Paixão – o sofrimento do servo em Isáias, capítulos 52 e 53 – uma turba une-se contra uma única vítima, assim como uma turba similar une-se contra Jeremias, Jó, o narrador dos salmos penitencias, etc. No livro do Gênesis, José é expulso pela invejosa turba formada por irmãos seus. Todos esses episódios de violência possuem a mesma estrutura todos-contra-um.

Como João Batista é um profeta, podemos esperar que sua morte violenta no Novo Testamento seja similar, e de fato João morre porque os convidados de Herodes transformam-se numa massa enfurecida. Herodes propriamente está inclinado a poupar a vida de João, assim como Pilatos a de Jesus – mas líderes que não opõem-se violentamente contra multidões enraivecidas acabam por juntar-se a elas, e assim unem-se Herodes e Pilatos. Os povos antigos tipicamente viam a dança ritual como a mais mimética das artes, solidificando os participantes de um sacrifício contra a vítima que brevemente será imolada. A hostil polarização contra João resulta da dança de Salomé – um resultado previsto e sabiamente arquitetado por Herodias com esse exato propósito.

Não há equivalente à dança de Salomé na Paixão de Cristo, mas é claramente presente uma dimensão mimética ou imitativa. A multidão que se une contra Jesus é a mesma que entusiasmadamente o recepcionou em Jerusalém poucos dias antes. A reversão súbita é típica de multidões instáveis em todo canto: ao invés de um ódio arraigado pela vítima, isso sugere uma onda contagiosa de violência.

Pedro espetacularmente ilustra esse contagio mimético. Quando cercado por pessoas hostis a Jesus, ele imita sua hostilidade. Ele obedece à mesma força mimética, por fim, como Pilatos e Herodes. Mesmo os ladrões crucificados com Jesus obedecem essa força e sentem-se compelidos a unir-se à multidão. E ainda, penso eu, os Evangelhos não buscam estigmatizar Pedro, ou os ladrões, ou a multidão como um todo, ou judeus como povo, mas revelar o enorme poder do contágio mimético – uma revelação válida para a cadeia inteira de assassinatos que se estendem retroativamente da Paixão até a “fundação do mundo”. Os Evangelhos possuem uma poderosa razão para suas constantes referências a esses assassinatos, e concerne a duas essenciais e ainda negligenciadas palavras, skandalon e Satanás.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Da argila à imagem


Entronizada inicialmente no séc.XIX como padroeira da Facvldade de Direito do Recife por alunos e professores, N.Sra. do Bom Conselho, retorna hoje a seu lugar de direito, graças a disposição do Círculo Católico e a ação do Movimento Centenarista.

Apresento agora um pequeno texto em comemoração ao fato.

Da argila à imagem

“Então Javé Deus, modelou o homem com a argila do solo, soprou-lhe nas narinas um sopro de vida, e o homem tornou-se um ser vivente”. (Gênesis 2, 7)

Da terra feita a vida do homem, não tardou pra que o mesmo, saído da argila, mergulhasse na lama de seus pecados. Assim como levanta poeira a terra batida, nebula o existir o torpor de nosso estado, a natureza decaída. Amamos a sujeira que cobre a Terra como porcos que não erguem olhos ao firmamento, que firme sempre há de durar, apesar da imundice que abaixo assola e nos envolve. Do pó viemos e ao pó não tardará nosso regresso, sempre a mais pisar no lamaçal, a nos sujar e nos sujar.

Na pedra cresce o musgo e da chuva as videiras fazem firmes raízes, dando alimento ao homem. Da terra nasce o trigo, a papoula e a sequóia, na terra faz a toca o tatu e no galho o ninho o João-de-barro. Da terra fez-se a vida, que da terra hoje ainda mesmo se tira. Da terra tira o homem à arte. Seja barro, gesso ou pedra, ou quem sabe ainda árvore, ganha forma a beleza trabalhada, esculpida lasca a lasca. Um pensar feito em matéria. Ensinando-nos o Deus na Terra usamos o que de belo se fazia para louvar a Deus então. Fez-nos Ele a Sua imagem e semelhança, fazemos nós pedaço de contemplação.

Os ignorantes às imagens querem soprar nas narinas e dar-lhes também vida; os humildes, ao contrário, da imagem aprendem, eles mesmos, a ter vida, e vivem então a dar frutos.

Medianeira primeira, flor-de-lis esplendorosa, a mais bela já nascida desde a terra, é a mais bela ainda que apenas feita em pedra. Da sua imagem só zombam insensatos, homens ingratos, de fato, e perante seu olhar não há quem se diga sério sem se envergonhar de suas próprias manchas, e ver naquela pedra refletida a sapiência eterna, espelho de Justiça, um clarão de misericórdia.

O Bom Conselho é em verdade maternal – maternos os olhos a vigiar – e filial é o adorar a Deus por meio dela, rainha bela deste lar. Que da terra, sempre ela, a máxima beleza alcançada seja polida, pra dar vida aos que mesmo na lama almejam ao sol. E como imagem que somos nós, saibamos também aprender pela imagem a ter vida. E ainda apenas simples imagens, peçamos então que rogue por nós a Santa Mãe do Bom Conselho.

Mater Boni Consilii, ora pro nobis!

sábado, 24 de maio de 2008

VOZ DE BRONZE

Rouca a voz da torre se esparge
E torna viva e alegre a mesma voz
Do frio rotundo corpo brônzeo forte lento
Que dança no ar qual palmas de outono
A dança das auroras e crepúsculos
Da cor de outono evelhecido e voz de céus
Suave como as nuvens em suas formas
E viva como os ventos e alegre como os homens
Do alto da garganta de pedra em cada torre
Tocando pontiaguda o céu sublime
Sonando do alto um a um após o outro
Em prece alegre e muito viva voz sem fim
A oração dos sinos aos centos de homens vivos
E homens findos filhos da voz dos séculos, enfim.

Por Geraldo Vasconcelos

quarta-feira, 23 de abril de 2008

O passar do tempo

Pode ser neológico o tiquetaquear do relógio, mas do tempo o passar foi desde o princípio assim, sem volta. E a cada acumular de segundos e somar de minutos segue o mundo o seu existir. O agravar do tempo, então, parece só nos restar patente com os vincos da testa e o pesar das dores nas juntas, mesmo que quando moços não tenhamos ouvido de alguém de face marcada e dobras doídas que “o tempo voa”. Quando movido na euforia da vida ainda pouca é não raro formar-se na cabeça de alguém a indistinção entre aproveitar a vida e vivê-la como espetáculo hedonista. E gastas as horas e gastos os dias, reclamam muitos do urgir do tempo, não percebendo estes que em verdade antes do tempo urge a Sabedoria.

Gasta-se o tempo com nada ou pouca coisa, achando ser isso tudo que há. Mas que pressa há em gastar?
O tempo é só agora; uma sucessão de agoras. E sendo então agora, o tempo não passa, quem passa somos nós nesse mundo passageiro.
Por
Gustavo V. de Andrade

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Ladrões pobres morrem ao furtar

Por Maria José Miranda Pereira, Promotora de Justiça do Distrito Federal (Correio Braziliense)

O título acima é propositadamente cômico. Imagine que abaixo dele houvesse um artigo desse conceituado jornal lamentando que a morte atinja sobretudo os ladrões menos abastados, vez que os de sofisticadas quadrilhas, a exemplo dos navalheiros, mensaleiros, sempre conseguem escapar da condenação criminal. Com a liberdade que a Justiça tão agilmente lhes concede, podem usufruir a fortuna surrupiada e destruir provas do crime. Imagine ainda que houvesse estatísticas de quantos ladrões pobres morrem por roubar em “condições inseguras”. E, chegando ao cúmulo, imagine que o articulista propusesse a legalização do furto como solução para promover a isonomia entre ricos e pobres, e para acabar com a injusta morte dos larápios menos favorecidos.

Seria total absurdo. Mas não é menos absurdo do que artigos e reportagens que temos lido nessa feroz campanha para legalização do aborto. Um deles com o título “Mulheres pobres morrem ao abortar”, em vez de propor que as mulheres, ricas ou pobres, deixem de abortar para deixar de morrer (como seria normal propor aos ladrões que deixassem de furtar para evitar risco de morte), propõe que as mulheres tenham o direito de exterminar seus filhos “em condições seguras”. E lamenta que a morte atinja sobretudo as gestantes pobres, uma vez que as ricas podem cometer esse crime em “clínicas particulares”, que oferecem “melhor atendimento”. Em nenhum momento o articulista se refere à vítima do aborto, o bebê, que é sempre morto, não só quando o aborto é praticado em “clínicas clandestinas” e com “métodos caseiros”, mas também quando é feito em sofisticados ambientes dotados de potentes máquinas de aspiração e de afiadas curetas para esquartejamento.

O texto refere-se a dados publicados pela maior rede privada de abortos do mundo, a IPPF, conhecida pelo cognome “A multinacional da morte”, com filiais em 180 países (no Brasil, com o nome de Bemfam). A nefanda organização, segundo o artigo, publicou relatório intitulado “Morte e negação: abortamento inseguro e pobreza”. Além de todas as falácias denunciadas, o documento prima por fraudar dados e manipular informações, como é praxe no meio abortista. Baseando-se em uma bola de cristal, “estima-se” que, no Brasil, sejam realizados 1,4 milhão de abortos e “calcula-se” que 31% das gravidezes terminam em abortamento. Esses dados, baseados na mais científica chutometria, podem ser mudados de acordo com a conveniência do panfletador.

Em 1990, um jornal do Rio de Janeiro dizia que, segundo a ONU, o Brasil era recordista mundial de abortos, com uma taxa anual de 3 milhões. Afinal, são 3 milhões ou 1,4 milhão? Ou seriam 100 mil? Talvez 10 mil? A dra. Zilda Arns, coordenadora da Pastoral da Criança, assustada com a quantidade de abortos que se diziam praticar no Brasil “segundo pesquisas da ONU”, foi consultar a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS, repartição regional da OMS) e recebeu a seguinte resposta em 1993: “Lamentavelmente, não é a primeira vez que, levianamente, se toma o nome da Organização Mundial de Saúde e/ou da Organização Pan-Americana de Saúde para dar informações que não emanam dessas instituições”.

Quanto às mortes maternas, faltou ao documento honestidade para dizer que seu número permanece estável ao longo dos anos em nosso país: 1.577 mortes em 2001, 1.655 em 2002, 1.584 em 2003 e 1.641 em 2004. Desse número, a quantidade de mortes maternas em gravidez que terminou em aborto nunca passou de 200. Seu ponto máximo foi 163 mortes, em 1997. Em 2001, 148 mortes; em 2002, 115 mortes; em 2003, 152; em 2004, 156. Detalhe importante: essa cifra engloba não só a morte materna devida a abortos provocados, mas também gravidez ectópica, mola hidatiforme, outros produtos anormais da concepção, aborto espontâneo, aborto não especificado, outros tipos de aborto e falhas na tentativa de aborto. Com uma gama tão abrangente, a cifra não chega a duas centenas, para tristeza dos abortistas (dados disponíveis na página do Departamento de Informação e Informática do SUS — Datasus).

No entanto, é possível também reduzir a zero esse baixo índice de mortes maternas por aborto. O caminho é exatamente o contrário ao proposto pela “multinacional da morte”: combater a lucrativa indústria do aborto, punir os aborteiros, fazer campanha de valorização da maternidade e da vida intra-uterina, dar assistência material e moral às gestantes em desespero e aos seus filhos nascituros.

É lamentável que governo e IPPF estejam unidos e usando os meios de comunicação social com argumentos falaciosos e falsas estatísticas para impor à população brasileira a aceitação do mais covarde de todos os assassinatos.