quinta-feira, 21 de agosto de 2008

São Míticos os Evangelhos? - Parte III


Por René Girard
(continuação)



O papel de Satanás, a personificação dos escândalos, nos ajuda a compreender a concepção mimética dos Evangelhos. Para a pergunta Como é que Satanás pode expulsar Satanás? (Marcos 3, 23), a resposta é a vitimização unânime.

Por um lado, Satanás é o instigador de escândalo, a força que desintegra as comunidades; por outro, ele é a resolução de escândalo por meio da vitimização unânime. Essa habilidade de última instância permite ao príncipe desse mundo resgatar suas possessões no último momento, quando estão extremamente ameaçados por sua desordem. Sendo ao mesmo tempo um princípio de desordem e um princípio de ordem, Satanás estás realmente dividido contra si mesmo.

A famosa representação do assassinato mimético de João Batista ocorre – em Marcos e Mateus – como um curioso flashback. Começando com o relato de Herodes ávido por controlar o rumor da ressurreição de João, e apenas depois voltando no tempo para narrar a morte de João, Marcos e Mateus revelam a origem a compulsiva crença de Herodes em sua própria participação no assassinato. Os evangelistas dão um passageiro, mas precioso, exemplo de gênesis mimético – do poder ordenador da violência, de sua habilidade de fundar cultura. A Crença de Herodes é vestigial, com certeza, mas o fato de dois Evangelhos mencionarem o fato confirma, em minha opinião, a autenticidade evangélica da doutrina que liga mitologia à vitimização mimética.

Os Cristãos modernos ficam habitualmente desconfortáveis com essa falsa ressurreição que parece assemelhar-se à verdadeira, mas Marcos e Mateus obviamente não compartilham desse embaraço. Ao invés de minimizar essas similaridades, eles atraem nossa atenção para elas, assim como Lucas atrai nossa atenção à semelhança entre a comunhão Cristã e a profana reconciliação de Herodes e Pilatos como resultado da morte de Cristo. Os evangelistas vêem algo muito simples e fundamental que nós mesmos deveríamos ver. Assim que compreendemos a semelhança da violência na Bíblia e nos mitos, podemos então entender como a Bíblia não é mítica – como a reação à violência exposta na Bíblia difere radicalmente da reação exposta pelos mitos.

Começando pela história de Caim e Abel, a Bíblia proclama a inocência da vítima mítica e a culpa de seus algozes. Vivendo após a anunciação dos Evangelhos, nós achamos isso natural e nunca paramos para analisar que nos mitos clássicos o oposto é verdadeiro: os perseguidores parecem sempre ter uma causa válida para perseguir suas vítimas. Os mitos Dionisíacos relata até mesmo os mais cruéis linchamentos como legítimos. Penteu é morto legitimamente por sua mãe e irmãs, nas Bacantes, já que seu desprezo pelo deus Dionísio é falta grave o suficiente para penalizá-lo com a morte. Édipo também mereceu seu destino. De acordo com o mito, ele realmente matou seu pai e se casou com sua mãe, e é de fato responsável pela praga que assolou Tebes. Expulsá-lo não era apenas um ato permitido, mas um dever religioso.

Mesmo que não sendo acusados de crime algum, as vítima míticas são ainda supostas de morrer por uma boa causa, e sua inocência não torna suas mortes menos legítimas. No mito Védico de Purusha, por exemplo, não há menção a ação errada alguma – mas o despedaçamento da vítima não deixa de ser um ato divino. Os pedaços do corpo de Purusha são necessários para criar as três grandes castas, o esteio da sociedade Indiana. No mito, a morte violenta é sempre justificada.

Se a violência dos mitos é puramente mimética – se é como a Paixão, como diz Jesus – todas essas justificativas são falsas. E mais, como são sistematicamente reversas à verdadeira distribuição de inocência e culpa, esses mitos não podem ser meramente ficcionais. São mentiras certamente, mas a mentira especifica atraída pelo contágio mimético – a falsa acusação que se espalha mimeticamente entre uma comunidade humana perturbada no clímax, quando escândalos polarizam-se contra um só bode-expiatório cuja morte reúne a comunidade. A máquina fabricante de mitos é o contágio mimético que desaparece por trás do mito gerado.

Não há nada de secreto a respeito das justificações abraçadas pelos mitos; a acusação estereotipada de uma turba violenta está sempre disponível quando se busca um bode-expiatório. Nos Evangelhos, entretanto, o maquinário do bode-expiatório faz-se completamente visível porque encontra oposição e não mais opera eficientemente. A resistência ao contágio mimético evita o mito de tomar forma. A conclusão à luz dos Evangelhos é inescapável: mitos são a voz das comunidades que unanimemente rendem-se ao contágio mimético de vitimização.

Essa interpretação é reforçada pelos otimistas encerramentos dos mitos. A conjunção da culpa da vítima e da reconciliação da comunidade é freqüente demais para ser fortuito. A única explicação possível é a distorcida representação da vitimização unânime. O processo violenta não é efetivo se não engana a todas as testemunhas, e a prova de que o é, no caso dos mitos, é a harmoniosa e catártica conclusão, enraizada no perfeitamente unânime assassinato.

Escutamos atualmente, que, por trás de cada texto e cada evento, há um infinito número de interpretações, todas mais ou menos equivalentes. A vitimização mimética faz a absurdidade dessa visão manifesta. Apenas duas reações possíveis existem ao contágio mimético, e elas fazem uma assombrosa diferença. Ou nos rendemos à multidão perseguidora, ou resistimos e restamos sozinhos. A primeira opção é uma unânime auto-engano que chamamos mitologia.

A segunda é o caminho para a verdade seguido pela Bíblia.


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