sexta-feira, 29 de agosto de 2008

São Míticos os Evangelhos? - Parte Final

Por René Girard(continuação)

O Cristianismo, no entanto, não é redutível a um esquema lógico. A revelação da vitimização unânime não pode envolver uma comunidade por inteiro – caso contrário não haveria ninguém para revelá-la. Pode apenas ser a conquista de uma ousada minoria que desafia a verdade oficial, e ainda pequena demais para que prevenir a um quase unânime episódio de vitimização ocorra. Tal minoria é, entretanto, extremamente vulnerável e tende normalmente a ser engolida pelo contágio mimético. Humanamente falando, a revelação é uma impossibilidade.

Na maioria dos textos bíblicos, a minoria dissidente permanece invisível, mas no Evangelho coincide com o grupo dos primeiros Cristãos. Os Evangelhos dramatizam a incapacidade humana ao insistir na inabilidade dos discípulos em resistir à multidão durante a Paixão (especialmente Pedro, que nega Jesus três vezes no pátio dos Sumos Sacerdotes). Ainda assim, após a Crucifixão – que deveria ter piorado a situação – esse patético punhado de fracos subitamente passam a fazer o que eram incapazes enquanto Cristo ainda estava lá para ajudá-los: corajosamente proclamam a inocência da vítima em clara afronta a seus algozes, tornam-se os destemidos apóstolos e missionários da Igreja primitiva.

A Ressurreição é responsável por essa mudança, claro, mas mesmo esse extraordinário milagre não seria suficiente para transformar esses homens completamente se tivesse sido uma maravilha isolada, ao invés da primeira manifestação do poder redentor da Cruz. Uma análise antropológica nos permite afirma isso, assim como a revelação da vítima Cristã difere das revelações míticas porque não se enraíza na ilusão de um bode-expiatório culpado, então a Ressurreição Cristã difere das míticas já que suas testemunhas são as pessoas que no final superam o contágio de vitimização (assim como Pedro e Paulo), e não as pessoas que se entregam a ele (como Herodes e Pilatos). A Ressurreição Cristã é indispensável para a simples revelação antropológica de vitimização unânime e da desmistificação das ressurreições míticas.

A morte de Cristo não é fonte de graça porque o Pai foi “vingado” por ela, mas porque Jesus viveu e morreu de forma que, se adotado por todos, iria espantar os escândalos e a vitimização decorrente desses escândalos. Jesus viveu de modo como todos os homens devem viver visando a união com um Deus Cuja natureza ele revelou.

Obedecendo perfeitamente às prescrições anti-miméticas que recomendou, Jesus não tem a menor tendência à rivalidade mimética e à vitimização. E ele morre, paradoxalmente, devido a essa perfeita inocência. Ele torna-se vítima do processo do qual libertará a humanidade. Quando um homem sozinho segue às prescrições do Reino de Deus parece uma provocação intolerável a todos aqueles que não seguem, e esse homem automaticamente designa-se como vítima de todos os homens. Esse paradoxo revela por completo “o pecado do mundo”, a incapacidade do homem em livrar-se de seus modos violentos.

Durante a vida de Cristo a dissidência minoritária daqueles que resistem ao contágio mimético limitava-se a um só homem, o próprio Cristo – que é simultaneamente a mais arbitrária das vítima (porque ele merece sua morte violenta menos do que todos) e a vítima menos arbitrária (porque sua perfeição é um insulto imperdoável à violência do mundo). Ele é o bode-expiatório da escolha, o cordeiro de Deus que todos escolhemos inconscientemente mesmo quando não sabendo estar escolhendo vítima alguma.

Quando Cristo morre só, abandonado pelos apóstolos, os perseguidores são unânimes mais uma vez. Se os Evangelhos estivessem tentando revelar um mito, a verdade que Jesus havia tentado revelar seria enterrada de uma vez por todas e o palco estaria armado para a triunfal revelação da vítima mitológica como a fonte divina da reordenação social através da “boa” violência do bode-expiatório que põe fim a toda má violência mimética que ameaçou a sociedade.

Se tal mito de morte e ressurreição não ocorre dessa vez – se Satanás no final é derrotado – a causa imediata é uma súbita coragem nos discípulos. Mas essa força não veio deles mesmos. Ela claramente é emanada da morte de Cristo, que havia antes anunciado que após sua morte eles seriam auxiliados pelo Espírito Santo da verdade. Essa é uma razão, creio eu, o Evangelho de João chama o Espírito de Deus de Paráclito, uma palavra do grego que simplesmente significa o advogado de defesa, o defensor de um acusado perante um tribunal. O Paráclito é, entre outras coisas, aquele que faz oposição ao Acusador: O Espírito de Verdade que dá a refutação definitiva às mentiras de Satanás. É por isso que Paulo escreve, em Corítinos 2, versículos 7 e 8: “Ensinamos uma coisa misteriosa e escondida: a sabedoria de Deus, aquela que ele projetou desde o princípio do mundo para nos levar à sua glória. Nenhuma autoridade do mundo conheceu tal sabedoria, pois se a tivessem conhecido não teriam crucificado o Senhor da glória”.

A verdadeira Ressurreição é baseada nas mentiras míticas da vítima culpada que merece morrer, mas sim na retificação dessa mentira, que vem do verdadeiro Deus e que reabre canais de comunicação que a própria humanidade fechou em seu auto-aprisionamento nas suas culturas violentas. Só a Graça Divina pode explicar porque, após a Ressurreição, os discípulos puderam transformar-se em uma minoria dissidente em um oceano de vitimização – pudera, entender o que antes não compreendiam: a inocência não só de Jesus, mas de todas as vítimas de assassinatos análogos à Paixão desde a fundação do mundo.

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