Por René Girard
Desde os primórdios do Cristianismo, semelhanças dos Evangelhos a certos mitos foram utilizadas como argumento contra a fé Cristã. Quando os apologetas pagãos a serviço do panteísmo oficial do Império Romano negaram que o mito da morte e ressurreição de Jesus diferia significantemente dos mitos de Dionísio, Osíris, Adonis, Attis etc., eles falharam em conter a crescente maré Cristã. Nos últimos duzentos anos, no entanto, como os antropólogos descobriram por todo o mundo mitos fundacionais que demonstravam similaridades à Paixão e Ressurreição de Cristo, a noção de Cristianismo enquanto mito parece ter se alastrado – mesmo entre os que se dizem cristãos.
Começando por alguma violenta crise cósmica ou social, e culminando no sofrimento de uma misteriosa vítima (comumente pelas mãos de uma multidão furiosa), todos esses mitos encerram com o triunfal retorno do sofredor, assim revelado como uma divindade. O tipo de pesquisa antropológica corrente antes da II Guerra Mundial – na qual teóricos esforçavam-se em contabilizar as semelhanças entre mitos – é lembrado como um desiludido fracasso “metafísico” pela maioria dos antropólogos hodiernos. Esse fracasso não parece, no entanto, ter enfraquecido o espírito cético cientificista, mas sim ter enfraquecido, de alguma forma misteriosa, a plausibilidade dos clamores dogmáticos da religião que os antigos teóricos esperavam suplantar: se a ciência ela mesma não pode formular verdades a respeito da natureza humana, então a religião – sendo manifestamente inferior à ciência – deve ter ainda menos valor do que tínhamos suposto.
Esse é o estado intelectual que o pensador cristão contemporâneo tem que enfrentar quando lê as Escrituras. A Cruz é incomparável até onde sua vítima é o Filho de Deus, mas em todos os outros aspectos é um evento humano. Uma análise daquele evento – explorando os aspectos antropológicos da Paixão, que não podemos negligenciar se temos por sério o dogma da Encarnação – não apenas revela a falsidade do ceticismo antropológico contemporâneo sobre a natureza humana. Como também descredita completamente a noção de que o Cristianismo é, em algum sentido, mitológico. Os mitos do mundo não revelam um modo de interpretar os Evangelhos, mas exatamente o inverso: os Evangelhos revelam a nós o modo de interpretar os mitos.
Jesus, obviamente, compara sua própria história a outras quando diz que sua morte será como a dos profetas: “a fim de que se peçam contas a esta geração do sangue de todos os profetas, derramado desde a criação do mundo, desde o sangue de Abel até o sangue de Zacarias, que foi morto entre o altar e o santuário” (Lucas 11, 50-51). O que devemos nos questionar é o que realmente quer dizer a palavra como nesse caso? Na morte que de forma mais impressionante se assemelha à Paixão – o sofrimento do servo em Isáias, capítulos 52 e 53 – uma turba une-se contra uma única vítima, assim como uma turba similar une-se contra Jeremias, Jó, o narrador dos salmos penitencias, etc. No livro do Gênesis, José é expulso pela invejosa turba formada por irmãos seus. Todos esses episódios de violência possuem a mesma estrutura todos-contra-um.
Como João Batista é um profeta, podemos esperar que sua morte violenta no Novo Testamento seja similar, e de fato João morre porque os convidados de Herodes transformam-se numa massa enfurecida. Herodes propriamente está inclinado a poupar a vida de João, assim como Pilatos a de Jesus – mas líderes que não opõem-se violentamente contra multidões enraivecidas acabam por juntar-se a elas, e assim unem-se Herodes e Pilatos. Os povos antigos tipicamente viam a dança ritual como a mais mimética das artes, solidificando os participantes de um sacrifício contra a vítima que brevemente será imolada. A hostil polarização contra João resulta da dança de Salomé – um resultado previsto e sabiamente arquitetado por Herodias com esse exato propósito.
Não há equivalente à dança de Salomé na Paixão de Cristo, mas é claramente presente uma dimensão mimética ou imitativa. A multidão que se une contra Jesus é a mesma que entusiasmadamente o recepcionou em Jerusalém poucos dias antes. A reversão súbita é típica de multidões instáveis em todo canto: ao invés de um ódio arraigado pela vítima, isso sugere uma onda contagiosa de violência.
Pedro espetacularmente ilustra esse contagio mimético. Quando cercado por pessoas hostis a Jesus, ele imita sua hostilidade. Ele obedece à mesma força mimética, por fim, como Pilatos e Herodes. Mesmo os ladrões crucificados com Jesus obedecem essa força e sentem-se compelidos a unir-se à multidão. E ainda, penso eu, os Evangelhos não buscam estigmatizar Pedro, ou os ladrões, ou a multidão como um todo, ou judeus como povo, mas revelar o enorme poder do contágio mimético – uma revelação válida para a cadeia inteira de assassinatos que se estendem retroativamente da Paixão até a “fundação do mundo”. Os Evangelhos possuem uma poderosa razão para suas constantes referências a esses assassinatos, e concerne a duas essenciais e ainda negligenciadas palavras, skandalon e Satanás.
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