domingo, 17 de agosto de 2008

São Míticos os Evangelhos? - Parte I

Numa tentativa de retomar as atividades, há já certo tempo inexistentes do "Lumen et Dulcedo", gostaria de oferecer algo um tanto diferente. No caso uma tradução de próprio cunho de um pequeno artigo intitulado "São Míticos os Evangelhos?", de autoria do antropólogo René Girard, professor emérito de língua francesa, literatura e civilização na Universidade de Stanford, tem entre suas principais obras A Violência e o Sagrado e Um longo argumento do princípio ao fim. Por questões práticas apresentarei o texto dividido em partes por meio de múltiplas postagens. O texto pode ser encontrado na integra em inglês no seguinte endereço: http://www.leaderu.com/ftissues/ft9604/girard.html

Por R
ené Girard


Desde os primórdios do Cristianismo, semelhanças dos Evangelhos a certos mitos foram utilizadas como argumento contra a fé Cristã. Quando os apologetas pagãos a serviço do panteísmo oficial do Império Romano negaram que o mito da morte e ressurreição de Jesus diferia significantemente dos mitos de Dionísio, Osíris, Adonis, Attis etc., eles falharam em conter a crescente maré Cristã. Nos últimos duzentos anos, no entanto, como os antropólogos descobriram por todo o mundo mitos fundacionais que demonstravam similaridades à Paixão e Ressurreição de Cristo, a noção de Cristianismo enquanto mito parece ter se alastrado – mesmo entre os que se dizem cristãos.

Começando por alguma violenta crise cósmica ou social, e culminando no sofrimento de uma misteriosa vítima (comumente pelas mãos de uma multidão furiosa), todos esses mitos encerram com o triunfal retorno do sofredor, assim revelado como uma divindade. O tipo de pesquisa antropológica corrente antes da II Guerra Mundial – na qual teóricos esforçavam-se em contabilizar as semelhanças entre mitos – é lembrado como um desiludido fracasso “metafísico” pela maioria dos antropólogos hodiernos. Esse fracasso não parece, no entanto, ter enfraquecido o espírito cético cientificista, mas sim ter enfraquecido, de alguma forma misteriosa, a plausibilidade dos clamores dogmáticos da religião que os antigos teóricos esperavam suplantar: se a ciência ela mesma não pode formular verdades a respeito da natureza humana, então a religião – sendo manifestamente inferior à ciência – deve ter ainda menos valor do que tínhamos suposto.

Esse é o estado intelectual que o pensador cristão contemporâneo tem que enfrentar quando lê as Escrituras. A Cruz é incomparável até onde sua vítima é o Filho de Deus, mas em todos os outros aspectos é um evento humano. Uma análise daquele evento – explorando os aspectos antropológicos da Paixão, que não podemos negligenciar se temos por sério o dogma da Encarnação – não apenas revela a falsidade do ceticismo antropológico contemporâneo sobre a natureza humana. Como também descredita completamente a noção de que o Cristianismo é, em algum sentido, mitológico. Os mitos do mundo não revelam um modo de interpretar os Evangelhos, mas exatamente o inverso: os Evangelhos revelam a nós o modo de interpretar os mitos.

Jesus, obviamente, compara sua própria história a outras quando diz que sua morte será como a dos profetas: “a fim de que se peçam contas a esta geração do sangue de todos os profetas, derramado desde a criação do mundo, desde o sangue de Abel até o sangue de Zacarias, que foi morto entre o altar e o santuário” (Lucas 11, 50-51). O que devemos nos questionar é o que realmente quer dizer a palavra como nesse caso? Na morte que de forma mais impressionante se assemelha à Paixão – o sofrimento do servo em Isáias, capítulos 52 e 53 – uma turba une-se contra uma única vítima, assim como uma turba similar une-se contra Jeremias, Jó, o narrador dos salmos penitencias, etc. No livro do Gênesis, José é expulso pela invejosa turba formada por irmãos seus. Todos esses episódios de violência possuem a mesma estrutura todos-contra-um.

Como João Batista é um profeta, podemos esperar que sua morte violenta no Novo Testamento seja similar, e de fato João morre porque os convidados de Herodes transformam-se numa massa enfurecida. Herodes propriamente está inclinado a poupar a vida de João, assim como Pilatos a de Jesus – mas líderes que não opõem-se violentamente contra multidões enraivecidas acabam por juntar-se a elas, e assim unem-se Herodes e Pilatos. Os povos antigos tipicamente viam a dança ritual como a mais mimética das artes, solidificando os participantes de um sacrifício contra a vítima que brevemente será imolada. A hostil polarização contra João resulta da dança de Salomé – um resultado previsto e sabiamente arquitetado por Herodias com esse exato propósito.

Não há equivalente à dança de Salomé na Paixão de Cristo, mas é claramente presente uma dimensão mimética ou imitativa. A multidão que se une contra Jesus é a mesma que entusiasmadamente o recepcionou em Jerusalém poucos dias antes. A reversão súbita é típica de multidões instáveis em todo canto: ao invés de um ódio arraigado pela vítima, isso sugere uma onda contagiosa de violência.

Pedro espetacularmente ilustra esse contagio mimético. Quando cercado por pessoas hostis a Jesus, ele imita sua hostilidade. Ele obedece à mesma força mimética, por fim, como Pilatos e Herodes. Mesmo os ladrões crucificados com Jesus obedecem essa força e sentem-se compelidos a unir-se à multidão. E ainda, penso eu, os Evangelhos não buscam estigmatizar Pedro, ou os ladrões, ou a multidão como um todo, ou judeus como povo, mas revelar o enorme poder do contágio mimético – uma revelação válida para a cadeia inteira de assassinatos que se estendem retroativamente da Paixão até a “fundação do mundo”. Os Evangelhos possuem uma poderosa razão para suas constantes referências a esses assassinatos, e concerne a duas essenciais e ainda negligenciadas palavras, skandalon e Satanás.

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