quarta-feira, 27 de agosto de 2008

São Míticos os Evangelhos? - Parte IV

> Por René Girard(continuação)


No lugar de culpar as vítimas, os Evangelhos culpam os algozes. O que os mitos sistematicamente escondem, a Bíblia revela.

A diferença não é meramente “moralística” (como acreditava Nietzsche) ou questão de escolha subjetiva; é uma questão de veracidade. Quando a Bíblia e os Evangelhos dizem que a vítima deveria ser poupada, eles não “têm pena” deles simplesmente. Eles furam a ilusão da vitimização unânime dos mitos fundacionais usados como uma solução para crises e instrumento de reorganização das comunidades humanas.

Quando examinamos os mitos a luz dos Evangelhos, até mesmo suas características mais enigmáticas fazem-se inteligíveis. Consideremos, por exemplo, as deficiências e anormalidades que parecem sempre se infligirem sobre os heróis míticos. Édipo manca, assim como boa parte dos heróis e divindades. Outros possuem uma só perna, ou um braço, ou um olho, ou são cegos, corcundas, etc. Outros são estranhamente altos ou estranhamente baixos. Alguns têm uma asquerosa doença cutânea, ou odores corporais tão intensos que afligem seus vizinhos. Em uma multidão, mesmo as menores deficiências e singularidades vão causar desconforto e, problemas devem aparecer, seus possuidores são passíveis de serem selecionados como vítimas. A preponderância de aleijados e portadores de anomalias entre os heróis míticos deve ser uma conseqüência estatística do tipo de vitimização que gera mitologia. Assim como a preponderância de “estranhos”: em todos os grupos isolados, estrangeiros produzem uma curiosidade que pode rapidamente transformar-se em hostilidade durante um pânico. A violência mimética é essencialmente desorientada; desprovida de causas válidas, ela seleciona vítimas de acordo com minúsculos sinais ou pseudocausas que podemos identificar como sinais preferenciais de vitimização.

Na Bíblia, as falsas ou insignificantes causas de violência mítica são efetivamente na simples e contundente afirmação, Odiaram-me sem motivo (João 15, 25), na qual Jesus cita e praticamente resume o Salmo 35 – um dos “salmos de bode-expiatório” que literalmente vira às avessas as justificações das turbas enfurecidas. Ao invés da multidão pronunciar-se justificando a violência com suas causas que a legitimam, a vítima fala denunciando que tais causas não existem.

Para explicar mitos arcaicos, precisamos apenas seguir o método que Jesus recomenda e substituir esse sem motivo pelas falsas causas míticas.

No Império Bizantino, pelo que parece, a tragédia de Édipo era lida como uma analogia a Paixão Cristã. Se verdade, aqueles primeiros antropólogos estavam aproximando-se do real problema pelo fim errado. Sua redução dos Evangelhos a mitos comuns apagou a luz dos Evangelhos com mitologia.

Em ordem de bem suceder, devemos iluminar a obscuridade dos mitos com a inteligência dos Evangelhos.

Se vitimização unânime reconcilia e reordena sociedades em proporção direta a sua ocultação, então deve perder a efetividade em direta proporção a sua revelação. Quando a mentira mítica é denunciada publicamente, a polarização dos escândalos deixa de ser unânime e a catarse social enfraquece e desaparece. No lugar de reconciliar a comunidade, a vitimização deve intensificar as divisões e dissidências.

Essas perturbadoras conseqüências deveriam ser sentidas nos Evangelhos, e, de fato, são. No Evangelho de João, por exemplo, tudo que Cristo faz ou diz possui um efeito divisório. O autor ao contrário de nos ocultar esse fato, repetidamente nos chama a atenção para ele. Assim como em Mateus 10, versículo 34, Jesus diz, “Eu não vim para trazer a paz, mas sim a espada”. Se a paz que a humanidade experimentou foi sempre fruto da vitimização inconsciente, a consciência que trazem os Evangelhos para o mundo pode apenas destruí-la.

A imagem de Satanás – “um mentiroso e o pai da mentira” (João 8, 44) – também expressa essa oposição entre a obscuridade mítica e a revelação evangélica da vitimização. A Crucifixão como derrota de Satanás, e a predição de Jesus de que Satanás “será destruído” (Marcos 3, 26), implica menos um mundo ordenado que um em que Satanás esteja a solta. Ao contrário de concluir com a tranqüilidade harmoniosa dos mitos, o Novo Testamento abre uma perspectiva apocalíptica, tanto na conclusão dos Evangelhos como no Livro da Revelação (Apocalipse). Para alcançar “a paz que supera todo entendimento”, a humanidade deve abrir mão de sua velha, paz parcial fundada na vitimização – e um grande distúrbio pode ser esperado. A dimensão apocalíptica não é um elemento estranho que deve ser extirpado do Novo Testamento no intuito de “melhorar” o Cristianismo, é parte integrante da revelação.

Satanás tenta silenciar Cristo com o mesmo processo que Jesus subverte. Ele tem razões para acreditar que seu antigo truque mimético deveria produzir, tendo Jesus como vítima, o que sempre produziu no passado: mais um mito ordinário, um sistema fechado de mentiras míticas. Ele tem boas razões para acreditar que o contágio mimético contra Cristo mostrar-se-á mais uma vez irresistível e a revelação será enterrada. As expectativas de Satanás não se cumprem. Os Evangelhos fazem o mesmo que a Bíblia fez anteriormente, reabilitando um profeta vitimizado, uma vítima falsamente acusada. Mas eles também universalizam essa reabilitação. Eles mostram que desde a fundação do mundo as vítimas de assassinatos análogas a Paixão foram vítimas do mesmo contágio mimético que Jesus. Os Evangelhos fazem a revelação completa. Eles dão a denúncia bíblica da idolatria uma concreta demonstração de como falsos deuses e seus violentos sistemas culturais são engendrados. Essa é a verdade que falta a mitologia, a verdade que subverte o violento sistema desse mundo. Se os Evangelhos fossem míticos eles mesmos, não poderiam prover o conhecimento que desmistifica a mitologia.

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