terça-feira, 19 de agosto de 2008

São Míticos os Evangelhos? - Parte II

Por René Girard (continuação)
A tradicional tradução inglesa de stumblig block (pedra de tropeço) é muito superior às tímidas traduções recentes, pois do grego skandalon designa um obstáculo incontornável que de alguma forma torna-se mais atrativo (assim como repulsivo) cada vez que nela tropeçamos. A primeira vez que Jesus predisse sua violenta morte (Mateus 16, 21-23), sua resignação horroriza Pedro, que tenta incutir alguma ambição mundana em seu mestre: Ao invés de imitar a Cristo, Pedro quer ser imitado por ele. Se dois amigos imitam as ambições um ao outro, ambos desejam o mesmo. E se não podem dividir esse objeto de desejo, competirão por ele, cada um transformando-se simultaneamente em modelo e obstáculo do outro. O desejo competitivo intensifica-se enquanto modelo e obstáculo se reforçam mutuamente, e segue uma escalada de rivalidade mimética; admiração dá vazão para indignação, ciúmes, inveja, ódio, e, por último, violência e vingança. Se Jesus houvesse imitado a ambição de Pedro, os dois começariam assim uma competição pela liderança por um politizado “movimento de Jesus”. Sentindo o perigo, Jesus veementemente interrompe Pedro: “Fique longe de mim, Santanás! Você é pedra de tropeço (skandalon) para mim”.
O quão mais nossos modelos impedem nossos desejos, mais fascinantes eles se tornam enquanto modelos. Escândalos podem ser sexuais, sem dúvida, porém não são mais uma questão de sexo do que ambição mundana. Devem ser definidos em termos não de seus objetos, mas da intensificação de seus obstáculos/modelos – sua rivalidade mimética que é a pecaminosa dinâmica do conflito humano e sua miséria psíquica. Se o problema da rivalidade mimética nos escapa, podemos confundir as prescrições de Cristo com uma utopia social. A verdade é que escândalos são uma ameaça tamanha que nada deveria ser poupado em evitá-los. Com a primeira deixa, nós deveríamos abandonar o objeto disputado para nossos rivais e consentir com suas mais ultrajantes exigências; nós deveríamos “oferecer a outra face”.
Se escolhemos Jesus como modelo, simultaneamente escolhemos seu próprio modelo, Deus Pai. Não possuindo desejo de apropriação algum, Jesus proclama a possibilidade de liberdade dos escândalos. Mas se escolhemos modelos possessivos nos achamos em escândalos intermináveis, porque nosso real modelo é Satanás. Um sedutor que nos tenta com desejos mais passíveis de gerar rivalidades, Satanás nos impede de alcançar o que simultaneamente nos incita a querer. Ele se transforma em um diabolos (outra palavra que designa o obstáculo/modelo da rivalidade mimética). Satanás é skandalon personificado, assim como explicita Jesus em sua repreensão a Pedro.
Já que a maioria dos seres humanos não segue Jesus, escândalos devem acontecer (Matues 18, 17), proliferando de modos que deveria por em risco a sobrevivência coletiva da humanidade – entendemos enfim o terrível poder da intensificação do desejo mimético, nenhuma sociedade parece capaz de enfrentá-lo. E ainda, apesar de muitas sociedades padecerem, novas sociedades conseguem nascer, e algumas poucas estabelecidas conseguem encontrar meios de sobreviver ou regenerar-se. Alguma força de resistência parece operar, não poderosa o bastante para acabar com os escândalos de uma vez por todas, mas ainda sim suficiente para amenizar seu impacto e mantê-los sobre algum controle.
Essa força de resistência é, acredito eu, o bode-expiatório mitológico – a vítima sacrifical do mito. Quando proliferam os escândalos, os homens se tornam tão obcecados por seus rivais que perdem de vista os objetos pelo qual competem e passam a focar-se ferozmente uns nos outros. Assim como o empréstimo do objeto do modelo muda para o empréstimo do ódio do rival, a mimese aquisitiva transforma-se em uma mimese de antagonistas. Mais e mais indivíduos polarizam contra cada vez menos inimigos até, que no fim, reste apenas um. Como todos acreditam na culpa da última vítima, todos voltam-se contra ele – e como essa vítima está agora isolada e indefesa, podem assim agir sem perigo de retaliação. Como resultado, nenhum inimigo existe mais para ninguém da comunidade. Escândalos evaporam e a paz retorna – por um tempo.
A preservação social contra a violência ilimitada de escândalos se sustenta na coalizão contra uma única vítima e sua violência limitada. A violenta morte de Jesus é, humanamente falando, um exemplo desse estranho processo. Antes que comece, Jesus adverte seus discípulos (e especialmente Pedro) que eles irão “escandalizar-se” por ele (Marcos 14, 27). Esse uso de skandalizein sugere que a força mimética em ação na violência de todos-contra-um é a mesma violência que ocorre na rivalidade mimética entre indivíduos. Ao prevenir uma revolta e dispersar a multidão, a Crucifixão é um exemplo de uma vitimização catártica. Um fascinante detalhe nos Evangelhos deixa claro os efeitos catárticos do assassinato mimético – e nos permite a distinção dos efeitos da Crucifixão Cristã.
Ao fim de sua narração da Paixão, Lucas escreve, “Nesse dia, Herodes e Pilatos ficaram amigos, pois antes eram inimigos” (23, 12). Essa reconciliação externamente assemelha-se a comunhão Cristã – como originou-se na morte de Cristo – e mesmo assim não tem nada a ver com ela. É um efeito catártico enraizado no contágio mimético.
Os perseguidores de Jesus percebem que influenciam uns aos outros mimeticamente. A ignorância deles não anula sua responsabilidade, mas a diminui: “Pai, perdoa-lhes! Eles não sabem o que estão fazendo!” (Lucas 23, 34). Uma declaração paralela em Atos 3, versículo 17 que isso deve ser interpretado literalmente. Pedro atribui à ignorância o comportamento da multidão e de seus líderes. Sua experiência pessoal da mimética compulsiva que possuí as massas o previne de ver-se como imune à violência contagiosa da vitimização.

2 comentários:

Duda disse...
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Anônimo disse...

Muito bom! Parabéns Gustavo!