segunda-feira, 19 de novembro de 2007

O Estado Religioso


No campo das idéias a contradição é uma figura tenebrosa, uma enfermidade. Contradizer-se é, não raro, motivo suficiente para a ridicularização do pronunciante e funciona apenas para o seu descrédito. Antes de desejarmos não nos contradizermos com medo das opiniões alheias, o fazemos pelo bem da sustentação de nossas idéias. Exigimos de nós mesmos um encadeamento lógico das mesmas, pelo bem de nossa própria saúde mental.

Visando a não contradição nossos pensamentos acomodam-se em nossas cabeças, por vezes a grande custo, de modo que haja espaço para todos e que fiquem perfeitamente alojados. Mesmo as mais excêntricas das idéias não podem conflitar-se pelo bem de seu defensor, posto que é difícil respeitar às idéias de alguém que não respeita à própria consciência. É comum que a maturidade nos sirva para a coesão das idéias, a proximidade que elas passam a apresentar, tornam-nas polidas e espelho umas para as outras. Os pensamentos passam a ser tão complementares uns aos outros que ao se expor um, outros parecem visíveis pela dedução, ou mesmo pela intuição, e se seguem fluentemente. Há uma idéia, porém, que consegue revelar as outras com maior grandeza, parece refletir a própria essência de nossa formação intelectual, esta idéia é a que fazemos de Deus. Um velho halterofilista barbado ou o sol que traz a colheita. A Verdade ou uma mentira. Não é o caso de que todas as idéias se desprendam dessa, mas o fato é que a partir dela a exposição de ideologias parece bem mais clara.

As linhas doutrinárias de um partido político estabelecem determinados parâmetros ideológicos, que se aplicam sobre diferentes áreas. Embora no Brasil os partidos se misturem numa única e invariável malha putrefata de imoralidade, ainda permeia o idealismo de que os partidos carregam bandeiras representativas de seus objetivos. É no que tangencia a ideologia pessoal com a partidária que os políticos definem sua direção, escolhem qual “bandeira” erguerão. É dito então que dentro dos partidos se supõe linhas ideológicas gerais a serem seguidas, interdependentes, que se organizam no estatuto assim como as idéias em nossa mente. Assim como nossa consciência estabelece limites éticos e morais para as nossas ações, o partido estabelece normas e objetivos gerais, explícitos ou implícitos, a serem obedecidos por seus membros.

O deputado federal Luiz Bassuma (PT/BA), presidente da Frente Parlamentar Contra o Aborto, sofreu represálias do presidente do PT da Bahia, Marcelino Galo por defender idéias que seriam contrárias à posição do partido a respeito do tema aborto, mesmo que, como tenha respondido, Bassuma não tenha ferido nenhum ponto programático do PT. Vê-se no caso do deputado baiano que os partidos têm sim proposições morais determinadas e que invariavelmente se relacionam a um direcionamento da religiosidade, mesmo que se acredite ser esta inexistente na política atual. Assim como é a idéia que fazemos da divindade a que melhor reflete nossas opiniões sobre outros assuntos diversos, assim também podemos perceber qual a visão que determinados partidos revelam de Deus. No livro-debate “No que crêem os que não crêem”, o progressista cardeal Carlo Maria Martini questiona a seu interlocutor, Umberto Eco, de onde proviria a moral daqueles que não acreditam em Deus, posto que não via como poderia esta existir sem Ele. Eco prontamente respondeu explicando que a moral não depende da crença em Deus. O cardeal Martini estava errado (não pela primeira e nem pela última vez). A moral pode não prescindir da crença em Deus, mas está intrinsecamente relacionada à divindade e, portanto, a religiosidade do indivíduo. Do materialismo supõe-se o ateísmo, visto que tem como valor apenas o que é sensível; neste sentido se expõe a confusão gerada pelo deputado baiano, pois mesmo que o PT tenha, aos olhos da mídia, tentado se “endireitar” continua a ser um partido formado nas bases do comunismo.

Quando sob a alegação da existência do Estado laico justificar o desmerecimento das propostas da Igreja, tenta-se instituir ações de uma moral mais liberal, não é uma exposição de indiferentismo religioso, mas sim uma proclamação descarada da fé do governo. A legalização do aborto com o pretexto de que ninguém além da mulher poderia legislar sobre o “seu” corpo, não se trata de uma mera determinação de uma liberdade pessoal, é antes disso uma negação estatal da existência de uma verdade que transpasse os limites do individualismo e do subjetivismo. Fé abrange todo um depósito de confiança quanto a uma pessoa é possível fazer, ela assim como a moral prescinde da crença na existência de Deus. O ateísmo é também um credo. É necessário não acreditar na existência da divindade para expandir os limites da “moral”, para acreditar na inconseqüência de nossas ações, ou ao menos, nas conseqüências apenas temporais.

O Estado laico inexiste. Mesmo que não dependa de uma religião organizada, é impossível a um Estado ser irreligioso. As determinações governamentais frutos da moral estatal, são como uma cortina aberta para a exposição do papel que Deus desempenha na sociedade. Não há para onde correr. Além de nossas próprias consciências, somos forçados na tentativa de assimilação da consciência partidária a conviver com as novas regras da moral social. Fazer uma crítica histórica da participação da Igreja Católica nas decisões estatais, em defesa de um Estado laico é senão estúpido, no mínimo inócuo. A religiosidade estará sempre presente enquanto seres humanos regerem as nações. Trata-se apenas de uma questão de saber a quem relegar a autoridade religiosa.


Por
Gustavo V. de Andrade

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