quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Interpretações enganosas do Motu Proprio Summorum Pontificum

Por Mons. Ignácio Barreiro Carámbula


Nos últimos tempos temos vistos crescerem os ataques e as más interpretações do Motu Próprio Summorum Pontificum. O objetivo de tais críticas é o de impedir ou ao menos restringir a aplicação desta lei, para depois poder ser afirmado que os fiéis não estão interessados no rito extraordinário da liturgia. Esta atitude demonstra um espírito de desobediência que foi denunciado abertamente por S. Em.ª Revm.ª Mons. Albert Malcom Ranjith, Secretário da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos. Tendo em conta a difusão destas críticas, creio que é útil analisa-las brevemente.

Alguns argumentaram que o Motu proprio enfraquece a autoridade do Concílio Vaticano II, e tem propostas para recuperar o seu espírito e não se separar dos textos aprovados. Isto produz riscos de graves distorções da doutrina da Igreja. Ao contrário, a interpretação do Concílio deve ser feita seguindo o critério da Hermenêutica da Continuidade indicada pelo Santo Padre. A proposta leva a uns e outros a concluir que seria difícil conciliar o rito extraordinário da liturgia com a visão eclesiológica do Vaticano II. Mas estes autores não estão em condições de demonstrar que o Vaticano II introduziu uma nova eclesiologia na Igreja. Afirmar que a eclesiologia do Vaticano II não é compatível com a precedente teologia da Igreja significaria cair em uma forma de Hermenêutica da descontinuidade e da ruptura, que Bento XVI denunciou como errônea em seu discurso à Cúria Romana em 22 de dezembro de 2005. Neste discurso demonstra também que a constituição da Igreja não poderia ser alterada pelo Concílio Vaticano II “porque não pode ser mudada, já que a constituição essencial da Igreja vem do Senhor e nos foi dada para que pudéssemos alcançar a vida eterna”.

Não se pode afirmar que a liturgia promulgada por Paulo VI seja a liturgia querida pelos padres conciliares. Esta é uma asserção de natureza histórica que pode se demonstrar com facilidade. Ao mesmo tempo tal afirmação não implica a negação da validez jurídica das reformas. Por tanto é legítimo discutir se a reforma paulina foi além do pedido na constituição conciliar Sacrosanctum Concilium. Daí que as discussões sobre os problemas da reforma não podem ser consideradas um ataque ao Concílio em si. Recentemente o Arcebispo Albert Malcom Ranjith, revelava como “…em matéria litúrgica, em várias inovações introduzidas se podem (…) encontrar diferenças substanciais entre o texto da constituição Sacrosanctum Concilium e a reforma pós-conciliar feita depois. É verdade que o documento deixava espaços abertos à interpretação e à investigação, mas isso não significa um convite a fazer uma renovação litúrgica entendida como algo feito ex novo; ao contrário, se inseria plenamente na tradição da Igreja”. Pode-se dizer que a eliminação do latim foi feita contra o estabelecido no Concílio; o mesmo se poderia dizer em relação aos sagrados silêncios. A constituição Sacrosanctum Concilium estabelece: “Por último não se introduzam inovações se não exige uma utilidade verdadeira e certa da Igreja, e só depois de ter a precaução de que as novas formas de desenvolvam, por assim dizer, organicamente a partir das existentes”.

Esta norma abre um amplo campo de reflexão e discussão sobre a maior e a menor prudência com que muitas mudanças foram introduzidas na liturgia, como a recepção da Comunhão na mão e a mudança na orientação dos altares; alterações introduzidas sem nenhum mandato do Concílio e sem estar organicamente ancorados na liturgia tradicional da Igreja. Há autores que falam de pontos de “fadiga e limites do chamado ritus antiquor”, mas se poderia dizer o mesmo e mais do Novus Ordo, que por certo não cumpriu as esperanças pastorais de seus promotores. As estatísticas da Igreja são uma prova palpável.

As pessoas que põem objeções ao Motu Próprio falam do risco de se ver reduzida a unidade ritual da Igreja Latina. Com a criação desta lei – dizem – estaríamos caminhando para a criação de fato de duas igrejas paralelas. Aqui devemos recordar que S. Pio V ao promulgar o Missal Romano com a Bula Quo primum tempore estabelecendo a obrigação de seu uso, estabeleceu também, como exceção, que as Igrejas que puderem demonstrar um rito próprio ininterruptamente usado durante mais de duzentos anos, o poderiam conservar. Depois do Concílio de Trento, que não obstante manifestou a vontade de unificar o rito latino, se manteve a pluralidade de ritos. O Cardeal Raztinger em 2001 afirmava: “Parece-me essencial reconhecer que ambos os missais são missais da Igreja, e pertencem a Igreja que permanece sempre a mesma”. Mais adiante o Cardeal acrescentava, para sublinhar que não há ruptura essencial, que a continuidade e a identidade da Igreja existem: “parece-me indispensável manter a possibilidade de celebrar segundo o antigo Missal, como sinal da identidade permanente da Igreja”. Em verdade se deve afirma que em nossos tempos esta unidade foi vilipendiada pelos abusos e interpretações excessivamente reformistas que sofreu a liturgia da Igreja após o Concílio. Pode-se afirmar também que a unidade ritual da Igreja Latina não é reforçada pelas formas de celebrar que adota a forma ordinária, e que a causa de tantas adaptações, intentos de inculturação, e diversos estilos, se apresentam como uma pluralidade de formas litúrgicas muito diversas entre elas. Recordo que faz alguns anos, uma professora de História, depois de participar em quatro missas diferentes em uma cidade da América do Norte, me disse que tinha a impressão de haver visitado quatro religiões diferentes. Quando nós apreciamos a forma extraordinária da liturgia falamos, falamos de um verdadeiro pluralismo; não creio que ajude a um sereno diálogo que um autor nos recorde que na época do Concílio de Trento “a Santa Sé quis privilegiar, mediante o rito romano, uma linha de rígida uniformidade”; isso é não historicamente correto. Talvez, o que o autor queira dizer é que ele, por razões de oposição ao Motu Próprio, é a favor de uma rígida uniformidade na celebração litúrgica segundo a forma ordinária; o que, de certa forma, é uma contradição, posto que a celebração deste rito não é particularmente uniforme.

Não se pode afirmar que o Motu Próprio seja puramente pastoral, porque tem como finalidade a proteção do tesouro litúrgico e da Santa Missa, que é o maior presente que a Igreja recebeu de Jesus Cristo. Por isso trata-se de uma visão reducionista afirmar que o Motu Próprio foi promulgado apenas para re-introduzir na unidade da Igreja os membros da Fraternidade Sacerdotal São Pio X. Devemos nos antecipar aos problemas com a comprovação da qual fala o Santo Padre em sua carta que acompanha o documento: se aceitarmos essa visão redutiva e se em três anos os membros da Fraternidade não voltarem à unidade canônica, os inimigos da liturgia tradicional poderiam dizer que o Motu Próprio não obteve os resultados para os quais foi promulgado. Diferentemente, esta nova lei da Igreja tem um claro objetivo dogmático e disciplinar, que é preservar a natureza sagrada da liturgia frente aos abusos. O Santo Padre, em sua carta que acompanha o Motu Próprio, chama a atenção sobre como “em muitos lugares”, a infidelidade na celebração do Novo Missal “levou freqüentemente a deformações da liturgia no limite do suportável”. Como destaca o Santo Padre no preâmbulo desta lei, a correta celebração da liturgia serve “não só para evitar erros, senão também para transmitir a integridade da fé, porque a lei da oração da Igreja corresponde a sua lei de fé”. Para ele a declaração legal do pleno valor do rito extraordinário serve como testemunho da sacralidade da liturgia e como meio para limitar os abusos litúrgicos.

As pessoas que põem objeção à aplicação deste Motu Próprio, argumentam também que o rito extraordinário não favorece a participação dos fiéis e que, conseqüentemente, vai contra o disposto na constituição Sacrosanctum Concilium: “Portanto, a Igreja, com grande cuidado, busca que os cristãos não assistam a este mistério de fé como estranhos e mudos espectadores, senão que compreendendo-o bem através dos ritos e das orações, participem conscientes, piedosa e ativamente na ação sagrada,…”. No rito tradicional se destaca, sobretudo, a participação interior ou espiritual dos fiéis, que é verdadeiramente a mais importante forma de participação. Para favorecer o recolhimento interior esta Missa tem muitos momentos de silêncio, ainda mais quando é rezada em sua forma solene ou rezada. A piedade, o culto a Deus, adquire seu sentido místico e cheio de humildade intelectual quando se fundamenta no silêncio. São Tomás de Aquino nos diz: “Deus é honrado no silêncio”. A participação interior se exercita com a atenção do ânimo e do coração, e se faz mais eficaz se se une à participação externa com gestos e de modo especial, respondendo com as orações e os cantos. Seguindo estas normas, muitos sacerdotes que celebram segundo o rito extraordinário busca favorecer a participação dos fiéis instruindo-os, por exemplo, a respeito de que atitude devem assumir (quando devem estar de joelhos, em pé ou sentados, exortando-os a responder às orações ou a unir suas vozes à do celebrante quando pedem ou consentem as rubricas, e exortando-os a cantar). Em conformidade com o artigo 6 do Motu Próprio, as leituras, depois de serem proclamadas em latim, são lidas em vernáculo. Quando a forma extraordinária da liturgia se generalize, estou seguro de que muitos sacerdotes buscarão o modo pelo qual a Instrução da Sagrada Congregação de Ritos sobre a Música Sacra e a Sagrada Liturgia seja plenamente aplicada.

Há autores que criticam o lecionário do rito extraordinário e o acusam de ser muito limitado em comparação com o que se utiliza quando se segue o Missal de Paulo VI. Aqui devemos fazer uma só pergunta: o aumento do número de textos bíblicos por acaso causa um maior conhecimento da doutrina por parte dos fiéis?

Estão em andamento variadas tentativas de impor uma aplicação restritiva do Motu Próprio. Quem agita o espantalho está dizendo que o pedido pela Missa tradicional pode “ser determinada pela curiosidade pelo diferente e pela busca de um folclore religioso”. O senso comum mostra que nenhum grupo pede a celebração desta forma litúrgica pelas ditas razões, ou outras superficiais.

Há outro autor que propõe uma verdadeira inquisição para determinar os motivos daqueles que, não tendo crescido com este rito, pedem agora o seu uso. Esta inquisição não está prevista no Motu Próprio, e, portanto, viola frontalmente os direitos dos fiéis. Muito mais grave é outra coisa que sugere este mesmo autor, que a decisão de celebrar a Missa tradicional por um sacerdote jovem, seria a indicação de uma possível fragilidade, dificuldade, cansaço, uma necessidade de instrumentos para compreender sua própria presença e identidade, não somente no mundo, senão dentro da Igreja que está em transição. Em outras palavras, o que afirma este autor é que os jovens sacerdotes são uns deslocados. O mais grave é que ele também sustenta que as mudanças sugeridas por ele são algo seguro, quase “predeterminadas pela história”.

Não é verdade o que se diz no editorial do La Civiltá Cattolica, isso é, que posto que no Motu Próprio “nada se fala sobre o sacramento da Ordem, que o único ritual para as ordenações é o da reforma litúrgica”. Aqui é preciso explicar, primeiramente que o fato deste sacramento não ser mencionado pelo legislador não significa sua interdição, pela própria natureza desta lei, que não é uma norma jurídica que crie direitos, mas que os reconhece. Como expliquei, esta norma não é constitutiva, senão declarativa. Em segundo lugar, tanto a Administração Apostólica Pessoal São João Maria Vianney como diversas ordens religiosas, tem como direito próprio o ritual para ordenação que existia antes das reformas pós-conciliares. Um princípio geral de interpretação da lei indica que uma norma geral não derroga direitos particulares, e isto seria aplicável no caso que se pretendesse afirmar que o Motu Próprio não reconhece a validez do rito da Ordem existente antes do Concílio.

Se tanto os que celebram a Santa Liturgia na forma ordinária como os que, como nós, celebram utilizando a forma extraordinária, tem o mesmo espírito de fé e de autêntica caridade, possam ter a esperança de que esta diversidade, prevista pelo Motu Próprio, não acabará de maneira alguma com a unidade da Igreja Latina, antes, porém, enriquecerá e fortificará a Igreja. Se todos atuam de boa fé, sem necessidade de restringir a legítima liberdade dos outros na escolha de liturgias aprovadas pelo Supremo Legislador, a unidade da Igreja sairá reforçada. Se esta nova lei é aceita e devidamente acolhida, teremos uma via de saída para a crise que há muitos anos está minando a Igreja, e encontraremos o dinamismo necessário para retomar o caminho evangelizador ao qual nos chama o Senhor.

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