quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Sobre a pronúncia do latim

É bem conhecido no meio católico tradicional o esforço feito pelos papas do início do século XX para que em toda a parte o latim usado em celebrações litúrgicas fosse pronunciado ao modo de Roma. Já no seu Motu Proprio Tra Le Sollecitudine, no qual procurava restaurar o uso do canto gregoriano, que fazia algum tempo vinha sendo largamente substituído por composições polifônicas renascentistas, o Papa São Pio X escrevia:
"O texto litúrgico tem de ser cantado como se encontra nos livros aprovados, sem posposição ou alteração das palavras, sem repetições indevidas, sem deslocar as sílabas, sempre de modo inteligível"
O recado parecia dirigir-se especialmente aos franceses, que por causa das peculiaridades da pronúncia do seu idioma nativo, quando estas eram aplicadas ao latim acabavam prejudicando o ritmo e a melodia dos cantos gregorianos e eram necessárias certas adaptações para corrigir esses desvios. É claro que a França, sempre orgulhosa das suas coisas, não se rendeu fácil, e vários movimentos em defesa da pronúnica francesa do latim se ergueram no país. Entre os personagens fiéis ao desejo do papa, se destacou a figura do então Arcebispo de Bourges, Louis Dubois, depois promovido a Cardeal-Arcebispo de Paris, a quem São Pio X escreveu uma carta em 1912, reconhecendo o seu esforço e justificando mais uma vez a sua vontade de que a pronúnica romana fosse usada em todo lugar. Diz o papa na carta:
"Sua carta de 21 de junho passado, como também aquelas que Nós recebemos de um grande número de piedosos e distintos católicos franceses, Nos tem mostrado, para Nossa grande satisfação, que desde a promulgação do Nosso Motu Proprio de 22 de novembro de 1903, sobre a música sacra, um grande zelo tem sido demonstrado nas diversas dioceses francesas para fazer com que a pronúnica da língua latina se aproxime cada vez mais daquela usada em Roma e que, em conseqüência, seja mais perfeita, de acordo com as melhores regras da arte, a execução das melodias gregorianas, trazidas outra vez por Nós à sua antiga forma tradicional. Vossa Excelência mesma, quando ocupava a Sé de Verdun, se engajou nesta reforma e fez algumas proveitosas e importantes regulações para assegurar o seu sucesso. Nós soubemos igualmente, com real satisfação, que esta reforma já está se propagando para muitos lugares e foi introduzida com sucesso em muitas catedrais, seminários, universidades e até mesmo em simples Igrejas rurais. A questão da pronúncia do latim está intimamente ligada à restauração do Canto Gregoriano, sempre presente nos Nosso pensamentos e recomendações desde o início do Nosso pontíficado. O acento e a pronúnica do latim tiveram grande influência na formação rítmica e melódica da frase gregoriana e portanto é importante que essas melodias sejam reproduzidas da forma como elas forma concebidas artisticamente na sua origem. E, por fim, a difusão da pronúncia romana terá a vantagem adicional, como Vossa Excelência bem lembrou, de consolidar cada vez mais o esforço de unidade litúrgica na França, uma unidade a ser realizada pelo feliz retorno à liturgia romana e ao canto gregoriano. Por essa razão, Nós desejamos que o movimento de retorno à pronúncia romana do latim continue com o mesmo zelo e sucesso consolador que marcou o seu progresso até então"
Dezesseis anos mais tarde, foi a vez do Papa Pio XI escrever ao agora Cardeal Dubois de Paris:
"Nós também muito estimamos o seu plano de impelir a todos os que ficam sob a sua jurisdição a pronunciar o latim mais ao estilo romano. E não satisfeitos, como os Nossos predecessores de feliz memória Pio X e Bento XV, em simplesmente aprovar essa pronúncia do latim, Nós expressamos o mais forte desejo de que todos os bispos de todas as nações a adotem nas celebrações litúrgicas"

Diante dessa vontade claramente expressa pelos papas de que nas cerimônias litúrgicas se adote a pronúnica romana, torna-se interessante que todos os fiéis tradicionais a conheçam. Especialmente no Brasil, que possui o costume largamente difundido das Missas dialogadas, quase excluindo as Missas simplesmente rezadas, os fiéis precisam lidar, a cada Missa, com a pronúncia do latim. Portanto, para a utilidade dos leitores deste blog, passaremos a descrever a seguir como pronunciá-lo de acordo com o jeito romano:

1. AS VOGAIS

- As vogais /a/, /i/ e /u/ não oferecem nenhuma dificuldade, pronunciam-se como no português.

- Já as vogais /e/ e /o/ necessitam de alguma atenção, pois elas devem ser pronunciadas sempre abertas. Assim, por exemplo, a palavra “Domine” se diz /-mi-né/ e não /-mi-nê/, e a palavra “Deus” se fala /-us/ e não /-us/ como no português.

- No latim não existe nasalização de vogais, portanto este é outro cuidado que devemos observar. Por exemplo, “campus” se diz /-m-pus/ e não /-pus/. Para quem tem o português como língua nativa, evitar as nasalizações talvez seja uma das poucas grandes dificuldades que o latim oferece.

- /ae/ e /oe/ se pronunciam também como um /e/ aberto, exceto quando o acento tônico recair sobre o /e/, como na palavra “poeta”, onde a letra /o/ também precisa ser dita.

- Devemos tomar cuidado também com as vogais fantasmas, que são muito comuns na pronúncia do português. Todas as consoantes precisam ser pronunciadas, sem que se enfie uma vogal inexistente na palavra. “Spiritus” não é a mesma coisa que “espiritus” ou “ispiritus”, e “omnes homines” é uma expressão que contém duas palavras que deveriam ser pronunciadas de maneira levemente diferente, já que em “omnes” não existe nenhuma vogal entre o /m/ e o /n/.

2. AS CONSOANTES

- As consoantes /b/, /f/, /m/, /n/, /p/, /q/ e /v/ pronunciam-se como no português.

- A letra /q/ merece apenas uma pequena observação pois ela sempre vem seguida da vogal /u/, e este /u/ pronuncia-se sempre, mesmo nas sílabas /que/ e /qui/, que se dizem /kué/ e /kui/.

- Já vimos que no latim não existem vogais nasalizadas, portanto o /m/ e o /n/ devem ser bem pronunciados. Expressões como, por exemplo, “ad Dominum Deum Nostrum” devem ter o /m/ final de cada palavra bem claro, sem que a vogal que o antecede seja nasalizada.

- O /p/ seguido de /h/ tem som de /f/, como em “philosophia”.

- /ca/, /co/, /cu/, /ga/, /go/ e /gu/ se falam como no português. Já /ce/, /ci/, /ge/ e /gi/ se dizem /tché/, /tchi/, /djé/ e /dji/.

- O /ch/ tem sempre som de /k/.

- /gn/ tem som de /nh/. “Agnus” = /a-nhus/.

- Sobre o /d/ e o /t/, primeiramente devemos notar que a maioria dos brasileiros pronuncia as sílabas /ti/ e /di/ como /tchi/ e /dji/. Isso naturalmente precisa ser eliminado da pronúncia latina. Em latim /ti/ e /di/ é /ti/ e /di/, sem nenhum som de espirro. Até porque, como nós vimos, os sons /tchi/ e /dji/, no latim, se escrevem /ci/ e /gi/, e portanto o /t/ e o /d/ não podem ser pronunciados da mesma maneira, sob o risco de causar alguma confusão.

- A sílaba /ti/ também tem uma outra peculiaridade. Quando ela vier seguida de uma vogal e não for antecedida por um /s/, ela se pronuncia /tsi/. Como exemplo, “gratia” se diz /gra-tsia/, enquanto “hostia”, se fala /hos-tia/ mesmo. A palavra “laetitia” seria portanto pronunciada como /lé-ti-tsia/ – lembre-se que /lé-ti-tsia/ não é a mesma coisa que /lé-tchi-tsia/.

- O /h/ é mudo, exceto quando vier entre dois /i/, quando ele adquire o som de /k/. “Mihi” se lê /mi-ki/.

- O /j/ tem som de /i/.

- O /l/ é sempre pronunciado, mesmo que ele não tenha nenhuma vogal depois de si. No português, quando isso acontece, o /l/ vira um /u/. Mas não pode acontecer o mesmo no latim.

- O /r/ não pode ser nunca aquele /r/ aspirado “carioca”, como é na maior parte do Brasil. A pronúncia do /r/ deve se fazer sempre vibrando a ponta da língua atrás dos dentes. O /rr/ também se fala vibrando a língua, só que de forma mais forte e prolongada. Acredito que o /r/ deve ser a maior dificuldade na pronúncia do latim para os brasileiros, pelo menos para aqueles que estão acostumados com o /r/ aspirado.

- A letra /s/ se pronuncia como no português. Isso vale inclusive para o fato de que quando esta letra estiver entre vogais, ela também tem som de /z/, como acontece na nossa língua. Dessa forma, por exemplo, a palavra “miserere” se diz /mi-zé--ré/ – recorde-se que o /e/ é aberto, não fique dizendo /mi-zê--rê/. Mas o /s/ não pode ser “chiado”, como é na maior parte do Brasil, deve ser sempre o /s/ sibilado, /s/ de cobra, /s/ paulista, ou seja lá como você conhece este /s/.

- /sce/ e /sci/ tem som de /ché/ e /chi/.

- O /x/ tem sempre o som de /ks/. Mas o /xc/ se pronuncia /kch/, como, por exemplo, em “excelsis”.

- A consoante /y/, que aparece em algumas palavras de origem grega, se pronuncia como um /i/.

- Por fim, a letra /z/ pode soar como /dz/ quando inicia uma palavra ou /ts/ quando se encontra no meio dela.


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