sexta-feira, 29 de agosto de 2008

São Míticos os Evangelhos? - Parte Final

Por René Girard(continuação)

O Cristianismo, no entanto, não é redutível a um esquema lógico. A revelação da vitimização unânime não pode envolver uma comunidade por inteiro – caso contrário não haveria ninguém para revelá-la. Pode apenas ser a conquista de uma ousada minoria que desafia a verdade oficial, e ainda pequena demais para que prevenir a um quase unânime episódio de vitimização ocorra. Tal minoria é, entretanto, extremamente vulnerável e tende normalmente a ser engolida pelo contágio mimético. Humanamente falando, a revelação é uma impossibilidade.

Na maioria dos textos bíblicos, a minoria dissidente permanece invisível, mas no Evangelho coincide com o grupo dos primeiros Cristãos. Os Evangelhos dramatizam a incapacidade humana ao insistir na inabilidade dos discípulos em resistir à multidão durante a Paixão (especialmente Pedro, que nega Jesus três vezes no pátio dos Sumos Sacerdotes). Ainda assim, após a Crucifixão – que deveria ter piorado a situação – esse patético punhado de fracos subitamente passam a fazer o que eram incapazes enquanto Cristo ainda estava lá para ajudá-los: corajosamente proclamam a inocência da vítima em clara afronta a seus algozes, tornam-se os destemidos apóstolos e missionários da Igreja primitiva.

A Ressurreição é responsável por essa mudança, claro, mas mesmo esse extraordinário milagre não seria suficiente para transformar esses homens completamente se tivesse sido uma maravilha isolada, ao invés da primeira manifestação do poder redentor da Cruz. Uma análise antropológica nos permite afirma isso, assim como a revelação da vítima Cristã difere das revelações míticas porque não se enraíza na ilusão de um bode-expiatório culpado, então a Ressurreição Cristã difere das míticas já que suas testemunhas são as pessoas que no final superam o contágio de vitimização (assim como Pedro e Paulo), e não as pessoas que se entregam a ele (como Herodes e Pilatos). A Ressurreição Cristã é indispensável para a simples revelação antropológica de vitimização unânime e da desmistificação das ressurreições míticas.

A morte de Cristo não é fonte de graça porque o Pai foi “vingado” por ela, mas porque Jesus viveu e morreu de forma que, se adotado por todos, iria espantar os escândalos e a vitimização decorrente desses escândalos. Jesus viveu de modo como todos os homens devem viver visando a união com um Deus Cuja natureza ele revelou.

Obedecendo perfeitamente às prescrições anti-miméticas que recomendou, Jesus não tem a menor tendência à rivalidade mimética e à vitimização. E ele morre, paradoxalmente, devido a essa perfeita inocência. Ele torna-se vítima do processo do qual libertará a humanidade. Quando um homem sozinho segue às prescrições do Reino de Deus parece uma provocação intolerável a todos aqueles que não seguem, e esse homem automaticamente designa-se como vítima de todos os homens. Esse paradoxo revela por completo “o pecado do mundo”, a incapacidade do homem em livrar-se de seus modos violentos.

Durante a vida de Cristo a dissidência minoritária daqueles que resistem ao contágio mimético limitava-se a um só homem, o próprio Cristo – que é simultaneamente a mais arbitrária das vítima (porque ele merece sua morte violenta menos do que todos) e a vítima menos arbitrária (porque sua perfeição é um insulto imperdoável à violência do mundo). Ele é o bode-expiatório da escolha, o cordeiro de Deus que todos escolhemos inconscientemente mesmo quando não sabendo estar escolhendo vítima alguma.

Quando Cristo morre só, abandonado pelos apóstolos, os perseguidores são unânimes mais uma vez. Se os Evangelhos estivessem tentando revelar um mito, a verdade que Jesus havia tentado revelar seria enterrada de uma vez por todas e o palco estaria armado para a triunfal revelação da vítima mitológica como a fonte divina da reordenação social através da “boa” violência do bode-expiatório que põe fim a toda má violência mimética que ameaçou a sociedade.

Se tal mito de morte e ressurreição não ocorre dessa vez – se Satanás no final é derrotado – a causa imediata é uma súbita coragem nos discípulos. Mas essa força não veio deles mesmos. Ela claramente é emanada da morte de Cristo, que havia antes anunciado que após sua morte eles seriam auxiliados pelo Espírito Santo da verdade. Essa é uma razão, creio eu, o Evangelho de João chama o Espírito de Deus de Paráclito, uma palavra do grego que simplesmente significa o advogado de defesa, o defensor de um acusado perante um tribunal. O Paráclito é, entre outras coisas, aquele que faz oposição ao Acusador: O Espírito de Verdade que dá a refutação definitiva às mentiras de Satanás. É por isso que Paulo escreve, em Corítinos 2, versículos 7 e 8: “Ensinamos uma coisa misteriosa e escondida: a sabedoria de Deus, aquela que ele projetou desde o princípio do mundo para nos levar à sua glória. Nenhuma autoridade do mundo conheceu tal sabedoria, pois se a tivessem conhecido não teriam crucificado o Senhor da glória”.

A verdadeira Ressurreição é baseada nas mentiras míticas da vítima culpada que merece morrer, mas sim na retificação dessa mentira, que vem do verdadeiro Deus e que reabre canais de comunicação que a própria humanidade fechou em seu auto-aprisionamento nas suas culturas violentas. Só a Graça Divina pode explicar porque, após a Ressurreição, os discípulos puderam transformar-se em uma minoria dissidente em um oceano de vitimização – pudera, entender o que antes não compreendiam: a inocência não só de Jesus, mas de todas as vítimas de assassinatos análogos à Paixão desde a fundação do mundo.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

LADAINHA LAURETANA - Santa Virgem das Virgens

Com a formação da Nova Aliança, a pureza representada pela virgindade foi elevada. E em decreto do Concílio de Trento, temos como Dogma de Fé que a virgindade é um estado superior ao que proporcione à união carnal. A maternidade entre as mulheres judias era preferida à virgindade, tanto que era grande desgraça a infertilidade, desde antes da Anunciação vemos, no entanto, delinear-se os princípios da Nova Aliança tendo Maria optado pela castidade e assim permanecendo por toda vida.

Sua pureza como virgem resplandeceu, e de Deus era precioso tesouro, “Como açucena entre espinhos/ é a minha amada entre as donzelas” (Ct 2,2). E sua pureza a fez exemplo: “É melhor não ter filhos e possuir a virtude, porque a memória da virtude é imortal, e tanto Deus como os homens a conhecem” (Sb 4,1).

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

São Míticos os Evangelhos? - Parte IV

> Por René Girard(continuação)


No lugar de culpar as vítimas, os Evangelhos culpam os algozes. O que os mitos sistematicamente escondem, a Bíblia revela.

A diferença não é meramente “moralística” (como acreditava Nietzsche) ou questão de escolha subjetiva; é uma questão de veracidade. Quando a Bíblia e os Evangelhos dizem que a vítima deveria ser poupada, eles não “têm pena” deles simplesmente. Eles furam a ilusão da vitimização unânime dos mitos fundacionais usados como uma solução para crises e instrumento de reorganização das comunidades humanas.

Quando examinamos os mitos a luz dos Evangelhos, até mesmo suas características mais enigmáticas fazem-se inteligíveis. Consideremos, por exemplo, as deficiências e anormalidades que parecem sempre se infligirem sobre os heróis míticos. Édipo manca, assim como boa parte dos heróis e divindades. Outros possuem uma só perna, ou um braço, ou um olho, ou são cegos, corcundas, etc. Outros são estranhamente altos ou estranhamente baixos. Alguns têm uma asquerosa doença cutânea, ou odores corporais tão intensos que afligem seus vizinhos. Em uma multidão, mesmo as menores deficiências e singularidades vão causar desconforto e, problemas devem aparecer, seus possuidores são passíveis de serem selecionados como vítimas. A preponderância de aleijados e portadores de anomalias entre os heróis míticos deve ser uma conseqüência estatística do tipo de vitimização que gera mitologia. Assim como a preponderância de “estranhos”: em todos os grupos isolados, estrangeiros produzem uma curiosidade que pode rapidamente transformar-se em hostilidade durante um pânico. A violência mimética é essencialmente desorientada; desprovida de causas válidas, ela seleciona vítimas de acordo com minúsculos sinais ou pseudocausas que podemos identificar como sinais preferenciais de vitimização.

Na Bíblia, as falsas ou insignificantes causas de violência mítica são efetivamente na simples e contundente afirmação, Odiaram-me sem motivo (João 15, 25), na qual Jesus cita e praticamente resume o Salmo 35 – um dos “salmos de bode-expiatório” que literalmente vira às avessas as justificações das turbas enfurecidas. Ao invés da multidão pronunciar-se justificando a violência com suas causas que a legitimam, a vítima fala denunciando que tais causas não existem.

Para explicar mitos arcaicos, precisamos apenas seguir o método que Jesus recomenda e substituir esse sem motivo pelas falsas causas míticas.

No Império Bizantino, pelo que parece, a tragédia de Édipo era lida como uma analogia a Paixão Cristã. Se verdade, aqueles primeiros antropólogos estavam aproximando-se do real problema pelo fim errado. Sua redução dos Evangelhos a mitos comuns apagou a luz dos Evangelhos com mitologia.

Em ordem de bem suceder, devemos iluminar a obscuridade dos mitos com a inteligência dos Evangelhos.

Se vitimização unânime reconcilia e reordena sociedades em proporção direta a sua ocultação, então deve perder a efetividade em direta proporção a sua revelação. Quando a mentira mítica é denunciada publicamente, a polarização dos escândalos deixa de ser unânime e a catarse social enfraquece e desaparece. No lugar de reconciliar a comunidade, a vitimização deve intensificar as divisões e dissidências.

Essas perturbadoras conseqüências deveriam ser sentidas nos Evangelhos, e, de fato, são. No Evangelho de João, por exemplo, tudo que Cristo faz ou diz possui um efeito divisório. O autor ao contrário de nos ocultar esse fato, repetidamente nos chama a atenção para ele. Assim como em Mateus 10, versículo 34, Jesus diz, “Eu não vim para trazer a paz, mas sim a espada”. Se a paz que a humanidade experimentou foi sempre fruto da vitimização inconsciente, a consciência que trazem os Evangelhos para o mundo pode apenas destruí-la.

A imagem de Satanás – “um mentiroso e o pai da mentira” (João 8, 44) – também expressa essa oposição entre a obscuridade mítica e a revelação evangélica da vitimização. A Crucifixão como derrota de Satanás, e a predição de Jesus de que Satanás “será destruído” (Marcos 3, 26), implica menos um mundo ordenado que um em que Satanás esteja a solta. Ao contrário de concluir com a tranqüilidade harmoniosa dos mitos, o Novo Testamento abre uma perspectiva apocalíptica, tanto na conclusão dos Evangelhos como no Livro da Revelação (Apocalipse). Para alcançar “a paz que supera todo entendimento”, a humanidade deve abrir mão de sua velha, paz parcial fundada na vitimização – e um grande distúrbio pode ser esperado. A dimensão apocalíptica não é um elemento estranho que deve ser extirpado do Novo Testamento no intuito de “melhorar” o Cristianismo, é parte integrante da revelação.

Satanás tenta silenciar Cristo com o mesmo processo que Jesus subverte. Ele tem razões para acreditar que seu antigo truque mimético deveria produzir, tendo Jesus como vítima, o que sempre produziu no passado: mais um mito ordinário, um sistema fechado de mentiras míticas. Ele tem boas razões para acreditar que o contágio mimético contra Cristo mostrar-se-á mais uma vez irresistível e a revelação será enterrada. As expectativas de Satanás não se cumprem. Os Evangelhos fazem o mesmo que a Bíblia fez anteriormente, reabilitando um profeta vitimizado, uma vítima falsamente acusada. Mas eles também universalizam essa reabilitação. Eles mostram que desde a fundação do mundo as vítimas de assassinatos análogas a Paixão foram vítimas do mesmo contágio mimético que Jesus. Os Evangelhos fazem a revelação completa. Eles dão a denúncia bíblica da idolatria uma concreta demonstração de como falsos deuses e seus violentos sistemas culturais são engendrados. Essa é a verdade que falta a mitologia, a verdade que subverte o violento sistema desse mundo. Se os Evangelhos fossem míticos eles mesmos, não poderiam prover o conhecimento que desmistifica a mitologia.

terça-feira, 26 de agosto de 2008

LADAINHA LAURETANA - Santa Mãe de Deus

Na tradução para o português somos levados a crer que tal título não está em lugar adequado, pois sendo Mãe de Deus, faria mais sentido encontrar-se na segunda parte da ladainha na qual são destacadas as qualidades maternais de Maria. Porém, temos que o sentido advindo da avocação no latim, Sancta Dei Genitrix, não é tanto de mãe no como se expressa na segunda parte, mas de Genitora, ou Genetriz de Deus, pois a essa avocação não é referido o princípio maternal propriamente, mas mais diretamente a qualidade de formadora, ou seja, a descendência de Cristo, Deus humanado, do ventre de Maria.

Não se passa que Deus tenha sido formado no seio de Maria, pois Deus é eterno. Vemos, no entanto, O anjo dizer a Maria que “O Espírito Santo virá sobre você, e a força do Altíssimo a cobrirá com sua sombra. Por isso, o Santo que vai nascer de você será chamado Filho de Deus” (Lc 1,35). Assim como ao visitar St. Isabel, sua prima, Maria ouve dela “Como posso merecer que a mãe do meu Senhor venha me visitar?” (Lc 1,43). Dessa forma ao dizermos ser Maria a Mãe de Deus, estamos em verdade afirmando a divindade de Cristo.

Temos então não que a divindade tenha sido gerada no ventre de Maria, mas dela nasceu Cristo que é o próprio Deus. Através dessa avocação percebemos como a dignidade dela é totalmente dependente da dignidade de Deus, e sendo ela a criatura com união mais próxima do Bem, é sua dignidade próxima do infinito. Mas ainda criatura é também próxima de nós, e dessa maneira atua como perfeita medianeira entre Deus e os homens; Nossa perfeita intercessora.

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

São Míticos os Evangelhos? - Parte III


Por René Girard
(continuação)



O papel de Satanás, a personificação dos escândalos, nos ajuda a compreender a concepção mimética dos Evangelhos. Para a pergunta Como é que Satanás pode expulsar Satanás? (Marcos 3, 23), a resposta é a vitimização unânime.

Por um lado, Satanás é o instigador de escândalo, a força que desintegra as comunidades; por outro, ele é a resolução de escândalo por meio da vitimização unânime. Essa habilidade de última instância permite ao príncipe desse mundo resgatar suas possessões no último momento, quando estão extremamente ameaçados por sua desordem. Sendo ao mesmo tempo um princípio de desordem e um princípio de ordem, Satanás estás realmente dividido contra si mesmo.

A famosa representação do assassinato mimético de João Batista ocorre – em Marcos e Mateus – como um curioso flashback. Começando com o relato de Herodes ávido por controlar o rumor da ressurreição de João, e apenas depois voltando no tempo para narrar a morte de João, Marcos e Mateus revelam a origem a compulsiva crença de Herodes em sua própria participação no assassinato. Os evangelistas dão um passageiro, mas precioso, exemplo de gênesis mimético – do poder ordenador da violência, de sua habilidade de fundar cultura. A Crença de Herodes é vestigial, com certeza, mas o fato de dois Evangelhos mencionarem o fato confirma, em minha opinião, a autenticidade evangélica da doutrina que liga mitologia à vitimização mimética.

Os Cristãos modernos ficam habitualmente desconfortáveis com essa falsa ressurreição que parece assemelhar-se à verdadeira, mas Marcos e Mateus obviamente não compartilham desse embaraço. Ao invés de minimizar essas similaridades, eles atraem nossa atenção para elas, assim como Lucas atrai nossa atenção à semelhança entre a comunhão Cristã e a profana reconciliação de Herodes e Pilatos como resultado da morte de Cristo. Os evangelistas vêem algo muito simples e fundamental que nós mesmos deveríamos ver. Assim que compreendemos a semelhança da violência na Bíblia e nos mitos, podemos então entender como a Bíblia não é mítica – como a reação à violência exposta na Bíblia difere radicalmente da reação exposta pelos mitos.

Começando pela história de Caim e Abel, a Bíblia proclama a inocência da vítima mítica e a culpa de seus algozes. Vivendo após a anunciação dos Evangelhos, nós achamos isso natural e nunca paramos para analisar que nos mitos clássicos o oposto é verdadeiro: os perseguidores parecem sempre ter uma causa válida para perseguir suas vítimas. Os mitos Dionisíacos relata até mesmo os mais cruéis linchamentos como legítimos. Penteu é morto legitimamente por sua mãe e irmãs, nas Bacantes, já que seu desprezo pelo deus Dionísio é falta grave o suficiente para penalizá-lo com a morte. Édipo também mereceu seu destino. De acordo com o mito, ele realmente matou seu pai e se casou com sua mãe, e é de fato responsável pela praga que assolou Tebes. Expulsá-lo não era apenas um ato permitido, mas um dever religioso.

Mesmo que não sendo acusados de crime algum, as vítima míticas são ainda supostas de morrer por uma boa causa, e sua inocência não torna suas mortes menos legítimas. No mito Védico de Purusha, por exemplo, não há menção a ação errada alguma – mas o despedaçamento da vítima não deixa de ser um ato divino. Os pedaços do corpo de Purusha são necessários para criar as três grandes castas, o esteio da sociedade Indiana. No mito, a morte violenta é sempre justificada.

Se a violência dos mitos é puramente mimética – se é como a Paixão, como diz Jesus – todas essas justificativas são falsas. E mais, como são sistematicamente reversas à verdadeira distribuição de inocência e culpa, esses mitos não podem ser meramente ficcionais. São mentiras certamente, mas a mentira especifica atraída pelo contágio mimético – a falsa acusação que se espalha mimeticamente entre uma comunidade humana perturbada no clímax, quando escândalos polarizam-se contra um só bode-expiatório cuja morte reúne a comunidade. A máquina fabricante de mitos é o contágio mimético que desaparece por trás do mito gerado.

Não há nada de secreto a respeito das justificações abraçadas pelos mitos; a acusação estereotipada de uma turba violenta está sempre disponível quando se busca um bode-expiatório. Nos Evangelhos, entretanto, o maquinário do bode-expiatório faz-se completamente visível porque encontra oposição e não mais opera eficientemente. A resistência ao contágio mimético evita o mito de tomar forma. A conclusão à luz dos Evangelhos é inescapável: mitos são a voz das comunidades que unanimemente rendem-se ao contágio mimético de vitimização.

Essa interpretação é reforçada pelos otimistas encerramentos dos mitos. A conjunção da culpa da vítima e da reconciliação da comunidade é freqüente demais para ser fortuito. A única explicação possível é a distorcida representação da vitimização unânime. O processo violenta não é efetivo se não engana a todas as testemunhas, e a prova de que o é, no caso dos mitos, é a harmoniosa e catártica conclusão, enraizada no perfeitamente unânime assassinato.

Escutamos atualmente, que, por trás de cada texto e cada evento, há um infinito número de interpretações, todas mais ou menos equivalentes. A vitimização mimética faz a absurdidade dessa visão manifesta. Apenas duas reações possíveis existem ao contágio mimético, e elas fazem uma assombrosa diferença. Ou nos rendemos à multidão perseguidora, ou resistimos e restamos sozinhos. A primeira opção é uma unânime auto-engano que chamamos mitologia.

A segunda é o caminho para a verdade seguido pela Bíblia.


quarta-feira, 20 de agosto de 2008

LADAINHA LAURETANA - Santa Maria

O nome da Santíssima Virgem, evocado nesse primeiro título, guarda em si já um número de qualidades admiráveis. Vejamos os significados de tão belo nome:

1.Seu nome significa “Senhora”, que curiosamente é uma outra palavra a qual vemos ter perdido com o tempo certo sentido inicial. Hoje muitas mulheres por uma vaidade boba não gostam de ser chamadas de senhoras, um título que expressa grande cordialidade, assim como em tempos já longínquos os homens em mostra de cavalheirismo ao apresentar-se emendavam ao seu próprio nome o adjetivo de “humilde servo”, ou então apresentavam-se “a seu serviço”.
Senhora, no caso, é referente ao poder senhorial, ou seja, assim como existiam senhores feudais e senhores de engenho cujo poder de mando cobria toda a terra a eles pertencente, Maria exerce sobre os homens soberania. Do francês podemos ver que a expressão de cordialidade referente às mulheres é madame, formado pela junção de duas palavras distintas, ma que significa minha, e dame que significa senhora, ou seja, é sinal distintivo de etiqueta a sujeição de chamar às mulheres de “minhas senhoras”. Cristo, porém, ainda preso à cruz, deu-nos Maria por Mãe, e assim fazendo, sujeitou o mundo a seu sublime senhoril. E eis, portanto, a grandeza de reconhece-la como Nossa Senhora, posto que é grande sinal de amor a Deus e de humildade.

2.O segundo significado que vemos trazer em tão doce nome é o de “Estrela do Mar”. Era costume daqueles que se aventuravam no mar guiarem-se pelas estrelas; através delas viam seu caminho no céu. Jesus, pois, fez dos apóstolos “pescadores de homens” e a Sua Igreja edificou sobre a pedra, que era Pedro. É fácil encontrarmos relatos a chamar a Igreja de “Barca de Pedro”, que segue guiada pela Estrela que brilha sobre o mar, a Estrela que revela o Caminho. Essa Estrela é Maria a servir-nos de exemplo, a guiar-nos na tribulação.
Desde a profecia de Simeão fez-se a vida de Maria um mar de amargura, sua alma transpassada por sete espadas, sete dores das mais profundas. Ela que atravessou esse mar com candura, sem nunca pecar, há de nos guiar em também atravessá-lo em direção à Vida.

Seu nome é tão doce e poderoso que alegra os anjos e atormenta os demônios, pois nem mesmo eles podem negar sua majestade.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

São Míticos os Evangelhos? - Parte II

Por René Girard (continuação)
A tradicional tradução inglesa de stumblig block (pedra de tropeço) é muito superior às tímidas traduções recentes, pois do grego skandalon designa um obstáculo incontornável que de alguma forma torna-se mais atrativo (assim como repulsivo) cada vez que nela tropeçamos. A primeira vez que Jesus predisse sua violenta morte (Mateus 16, 21-23), sua resignação horroriza Pedro, que tenta incutir alguma ambição mundana em seu mestre: Ao invés de imitar a Cristo, Pedro quer ser imitado por ele. Se dois amigos imitam as ambições um ao outro, ambos desejam o mesmo. E se não podem dividir esse objeto de desejo, competirão por ele, cada um transformando-se simultaneamente em modelo e obstáculo do outro. O desejo competitivo intensifica-se enquanto modelo e obstáculo se reforçam mutuamente, e segue uma escalada de rivalidade mimética; admiração dá vazão para indignação, ciúmes, inveja, ódio, e, por último, violência e vingança. Se Jesus houvesse imitado a ambição de Pedro, os dois começariam assim uma competição pela liderança por um politizado “movimento de Jesus”. Sentindo o perigo, Jesus veementemente interrompe Pedro: “Fique longe de mim, Santanás! Você é pedra de tropeço (skandalon) para mim”.
O quão mais nossos modelos impedem nossos desejos, mais fascinantes eles se tornam enquanto modelos. Escândalos podem ser sexuais, sem dúvida, porém não são mais uma questão de sexo do que ambição mundana. Devem ser definidos em termos não de seus objetos, mas da intensificação de seus obstáculos/modelos – sua rivalidade mimética que é a pecaminosa dinâmica do conflito humano e sua miséria psíquica. Se o problema da rivalidade mimética nos escapa, podemos confundir as prescrições de Cristo com uma utopia social. A verdade é que escândalos são uma ameaça tamanha que nada deveria ser poupado em evitá-los. Com a primeira deixa, nós deveríamos abandonar o objeto disputado para nossos rivais e consentir com suas mais ultrajantes exigências; nós deveríamos “oferecer a outra face”.
Se escolhemos Jesus como modelo, simultaneamente escolhemos seu próprio modelo, Deus Pai. Não possuindo desejo de apropriação algum, Jesus proclama a possibilidade de liberdade dos escândalos. Mas se escolhemos modelos possessivos nos achamos em escândalos intermináveis, porque nosso real modelo é Satanás. Um sedutor que nos tenta com desejos mais passíveis de gerar rivalidades, Satanás nos impede de alcançar o que simultaneamente nos incita a querer. Ele se transforma em um diabolos (outra palavra que designa o obstáculo/modelo da rivalidade mimética). Satanás é skandalon personificado, assim como explicita Jesus em sua repreensão a Pedro.
Já que a maioria dos seres humanos não segue Jesus, escândalos devem acontecer (Matues 18, 17), proliferando de modos que deveria por em risco a sobrevivência coletiva da humanidade – entendemos enfim o terrível poder da intensificação do desejo mimético, nenhuma sociedade parece capaz de enfrentá-lo. E ainda, apesar de muitas sociedades padecerem, novas sociedades conseguem nascer, e algumas poucas estabelecidas conseguem encontrar meios de sobreviver ou regenerar-se. Alguma força de resistência parece operar, não poderosa o bastante para acabar com os escândalos de uma vez por todas, mas ainda sim suficiente para amenizar seu impacto e mantê-los sobre algum controle.
Essa força de resistência é, acredito eu, o bode-expiatório mitológico – a vítima sacrifical do mito. Quando proliferam os escândalos, os homens se tornam tão obcecados por seus rivais que perdem de vista os objetos pelo qual competem e passam a focar-se ferozmente uns nos outros. Assim como o empréstimo do objeto do modelo muda para o empréstimo do ódio do rival, a mimese aquisitiva transforma-se em uma mimese de antagonistas. Mais e mais indivíduos polarizam contra cada vez menos inimigos até, que no fim, reste apenas um. Como todos acreditam na culpa da última vítima, todos voltam-se contra ele – e como essa vítima está agora isolada e indefesa, podem assim agir sem perigo de retaliação. Como resultado, nenhum inimigo existe mais para ninguém da comunidade. Escândalos evaporam e a paz retorna – por um tempo.
A preservação social contra a violência ilimitada de escândalos se sustenta na coalizão contra uma única vítima e sua violência limitada. A violenta morte de Jesus é, humanamente falando, um exemplo desse estranho processo. Antes que comece, Jesus adverte seus discípulos (e especialmente Pedro) que eles irão “escandalizar-se” por ele (Marcos 14, 27). Esse uso de skandalizein sugere que a força mimética em ação na violência de todos-contra-um é a mesma violência que ocorre na rivalidade mimética entre indivíduos. Ao prevenir uma revolta e dispersar a multidão, a Crucifixão é um exemplo de uma vitimização catártica. Um fascinante detalhe nos Evangelhos deixa claro os efeitos catárticos do assassinato mimético – e nos permite a distinção dos efeitos da Crucifixão Cristã.
Ao fim de sua narração da Paixão, Lucas escreve, “Nesse dia, Herodes e Pilatos ficaram amigos, pois antes eram inimigos” (23, 12). Essa reconciliação externamente assemelha-se a comunhão Cristã – como originou-se na morte de Cristo – e mesmo assim não tem nada a ver com ela. É um efeito catártico enraizado no contágio mimético.
Os perseguidores de Jesus percebem que influenciam uns aos outros mimeticamente. A ignorância deles não anula sua responsabilidade, mas a diminui: “Pai, perdoa-lhes! Eles não sabem o que estão fazendo!” (Lucas 23, 34). Uma declaração paralela em Atos 3, versículo 17 que isso deve ser interpretado literalmente. Pedro atribui à ignorância o comportamento da multidão e de seus líderes. Sua experiência pessoal da mimética compulsiva que possuí as massas o previne de ver-se como imune à violência contagiosa da vitimização.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

LADAINHA LAURETANA - Introdução

Escancarando de uma vez por todas o viés católico do blog gostaria de iniciar paralelamente à apresentação do texto “São Míticos os Evangelhos?” um pequeno estudo a respeito da Ladainha Lauretana. Aos ateus, agnósticos e comunistas esotéricos que por ventura acessarem o “Lumen et Dulcedo”, paciência.

O passar do tempo é por vezes impiedoso. São poucos os de muita idade que dão graças à sabedoria, preferindo queixar-se dos joelhos e das costas que doem com o frio. Não são poupados sequer os significados das coisas sagradas, e assim veio o tempo para desnaturar o entender das ladainhas. Uma oração digníssima e de louvor grandioso, cujo nome transformou-se sinônimo de algo enfadonho e cansativo. A palavra ladainha vem de litania, que significa oração de invocação ou intercessão.

O reto entendimento das coisas nos faz amar àquelas que nos mostram ser boas. Assim sendo faz-se mister a compreensão das vontades expressas na oração, nesse caso específico da ladainha, a Ladainha Lauretana. Percebendo a honra que trazem os títulos que dirigimos à Santíssima Virgem, seu entendimento transforma o dito marasmo do que se habituou chamar por ladainha em uma movimentação de graciosidade da alma.

A Ladainha Lauretana ou Ladainha da Santíssima Virgem foi composta quando há pouco se encerrava a Idade Média. Guarda esse nome devido à aprovação do Papa Sixto V, no ano de 1587, dada à ladainha habitualmente utilizada pelos fiéis que freqüentavam a Santa Casa, na cidade de Loreto. Com essa aprovação, as demais ladainhas acabaram por ser suprimidas. Alguns dos títulos que constam atualmente foram acrescentados solenemente à ladainha original por uma série de Papas ao longo da história.

A Ladainha da Santíssima Virgem segue a seguinte estrutura:


1. A santidade de Maria: Primeira parte é composta por três avocações, que destacam: a santidade de Maria como pessoa, seu papel como Mãe (genitora) de Jesus Cristo e sua vocação como virgem.
2. Maria, a Mãe: Segunda parte composta por doze avocações referentes à maternidade de Maria.
3. Maria, a Virgem: Terceira parte formada por seis títulos honra Maria como virgem, tratando não só de seus méritos como tal, mas também da eficácia de sua virgindade.
4. Símbolos de Maria: Depois se seguem treze avocações simbólicas, em sua maioria retirados do Antigo Testamento e referentes a N.Sra, evidenciando suas virtudes e seu papel como co-redentora da humanidade.
5. Maria, a Intercessora: Os quatros títulos seguintes exaltam o papel de Maria como intercessora nas obras de misericórdia espirituais e corporais.
6. Maria, a Rainha: E no último trecho da ladainha exaltamos por meio de treze títulos Maria como Rainha.


Eis a oração na integra:

Senhor, tende piedade de nós.
Jesus Cristo, tende piedade de nós.
Senhor, tende piedade de nós.
Jesus Cristo, ouvi-nos.
Jesus Cristo, atendei-nos.
Pai celeste que sois Deus,
tende piedade de nós.
Filho, Redentor do mundo, que sois Deus,
tende piedade de nós.
Espírito Santo, que sois Deus,
tende piedade de nós.
Santíssima Trindade, que sois um só Deus,
tende piedade de nós.
Santa Maria, rogai por nós.
Santa Mãe de Deus,
Santa Virgem das Virgens,
Mãe de Jesus Cristo,
Mãe da divina graça,
Mãe puríssima,
Mãe castíssima,
Mãe imaculada,
Mãe intacta,
Mãe amável,
Mãe admirável,
Mãe do bom conselho,
Mãe do Criador,
Mãe do Salvador,
Virgem prudentíssima,
Virgem venerável,
Virgem louvável,
Virgem poderosa,
Virgem clemente,
Virgem fiel,
Espelho de justiça,
Sede de sabedoria,
Causa da nossa alegria,
Vaso espiritual,
Vaso honorífico,
Vaso insígne de devoção,
Rosa mística,
Torre de David,
Torre de marfim,
Casa de ouro,
Arca da aliança,
Porta do céu,
Estrela da manhã,
Saúde dos enfermos,
Refúgio dos pecadores,
Consoladora dos aflitos,
Auxílio dos cristãos,
Rainha dos anjos,
Rainha dos patriarcas,
Rainha dos profetas,
Rainha dos apóstolos,
Rainha dos mártires,
Rainha dos confessores,
Rainha das virgens,
Rainha de todos os santos,
Rainha concebida sem pecado original,
Rainha elevada ao céu,
Rainha do sacratíssimo Rosário,
Rainha da paz,

Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo,
perdoai-nos Senhor.
Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo,
ouvi-nos Senhor.
Cordeiro de Deus, que tirais os pecados do mundo,
tende piedade de nós.

V. Rogai por nós, Santa Mãe de Deus,
R. Para que sejamos dignos das promessas de Cristo.

Oremos.
Senhor Deus, nós Vos suplicamos que concedais aos vossos servos perpétua saúde de alma e de corpo; e que, pela gloriosa intercessão da bem-aventurada sempre Virgem Maria, sejamos livres da presente tristeza e gozemos da eterna alegria.
Por Cristo Nosso Senhor.
Amém.

Veremos um pouco do significado das avocações nas próximas postagens

domingo, 17 de agosto de 2008

São Míticos os Evangelhos? - Parte I

Numa tentativa de retomar as atividades, há já certo tempo inexistentes do "Lumen et Dulcedo", gostaria de oferecer algo um tanto diferente. No caso uma tradução de próprio cunho de um pequeno artigo intitulado "São Míticos os Evangelhos?", de autoria do antropólogo René Girard, professor emérito de língua francesa, literatura e civilização na Universidade de Stanford, tem entre suas principais obras A Violência e o Sagrado e Um longo argumento do princípio ao fim. Por questões práticas apresentarei o texto dividido em partes por meio de múltiplas postagens. O texto pode ser encontrado na integra em inglês no seguinte endereço: http://www.leaderu.com/ftissues/ft9604/girard.html

Por R
ené Girard


Desde os primórdios do Cristianismo, semelhanças dos Evangelhos a certos mitos foram utilizadas como argumento contra a fé Cristã. Quando os apologetas pagãos a serviço do panteísmo oficial do Império Romano negaram que o mito da morte e ressurreição de Jesus diferia significantemente dos mitos de Dionísio, Osíris, Adonis, Attis etc., eles falharam em conter a crescente maré Cristã. Nos últimos duzentos anos, no entanto, como os antropólogos descobriram por todo o mundo mitos fundacionais que demonstravam similaridades à Paixão e Ressurreição de Cristo, a noção de Cristianismo enquanto mito parece ter se alastrado – mesmo entre os que se dizem cristãos.

Começando por alguma violenta crise cósmica ou social, e culminando no sofrimento de uma misteriosa vítima (comumente pelas mãos de uma multidão furiosa), todos esses mitos encerram com o triunfal retorno do sofredor, assim revelado como uma divindade. O tipo de pesquisa antropológica corrente antes da II Guerra Mundial – na qual teóricos esforçavam-se em contabilizar as semelhanças entre mitos – é lembrado como um desiludido fracasso “metafísico” pela maioria dos antropólogos hodiernos. Esse fracasso não parece, no entanto, ter enfraquecido o espírito cético cientificista, mas sim ter enfraquecido, de alguma forma misteriosa, a plausibilidade dos clamores dogmáticos da religião que os antigos teóricos esperavam suplantar: se a ciência ela mesma não pode formular verdades a respeito da natureza humana, então a religião – sendo manifestamente inferior à ciência – deve ter ainda menos valor do que tínhamos suposto.

Esse é o estado intelectual que o pensador cristão contemporâneo tem que enfrentar quando lê as Escrituras. A Cruz é incomparável até onde sua vítima é o Filho de Deus, mas em todos os outros aspectos é um evento humano. Uma análise daquele evento – explorando os aspectos antropológicos da Paixão, que não podemos negligenciar se temos por sério o dogma da Encarnação – não apenas revela a falsidade do ceticismo antropológico contemporâneo sobre a natureza humana. Como também descredita completamente a noção de que o Cristianismo é, em algum sentido, mitológico. Os mitos do mundo não revelam um modo de interpretar os Evangelhos, mas exatamente o inverso: os Evangelhos revelam a nós o modo de interpretar os mitos.

Jesus, obviamente, compara sua própria história a outras quando diz que sua morte será como a dos profetas: “a fim de que se peçam contas a esta geração do sangue de todos os profetas, derramado desde a criação do mundo, desde o sangue de Abel até o sangue de Zacarias, que foi morto entre o altar e o santuário” (Lucas 11, 50-51). O que devemos nos questionar é o que realmente quer dizer a palavra como nesse caso? Na morte que de forma mais impressionante se assemelha à Paixão – o sofrimento do servo em Isáias, capítulos 52 e 53 – uma turba une-se contra uma única vítima, assim como uma turba similar une-se contra Jeremias, Jó, o narrador dos salmos penitencias, etc. No livro do Gênesis, José é expulso pela invejosa turba formada por irmãos seus. Todos esses episódios de violência possuem a mesma estrutura todos-contra-um.

Como João Batista é um profeta, podemos esperar que sua morte violenta no Novo Testamento seja similar, e de fato João morre porque os convidados de Herodes transformam-se numa massa enfurecida. Herodes propriamente está inclinado a poupar a vida de João, assim como Pilatos a de Jesus – mas líderes que não opõem-se violentamente contra multidões enraivecidas acabam por juntar-se a elas, e assim unem-se Herodes e Pilatos. Os povos antigos tipicamente viam a dança ritual como a mais mimética das artes, solidificando os participantes de um sacrifício contra a vítima que brevemente será imolada. A hostil polarização contra João resulta da dança de Salomé – um resultado previsto e sabiamente arquitetado por Herodias com esse exato propósito.

Não há equivalente à dança de Salomé na Paixão de Cristo, mas é claramente presente uma dimensão mimética ou imitativa. A multidão que se une contra Jesus é a mesma que entusiasmadamente o recepcionou em Jerusalém poucos dias antes. A reversão súbita é típica de multidões instáveis em todo canto: ao invés de um ódio arraigado pela vítima, isso sugere uma onda contagiosa de violência.

Pedro espetacularmente ilustra esse contagio mimético. Quando cercado por pessoas hostis a Jesus, ele imita sua hostilidade. Ele obedece à mesma força mimética, por fim, como Pilatos e Herodes. Mesmo os ladrões crucificados com Jesus obedecem essa força e sentem-se compelidos a unir-se à multidão. E ainda, penso eu, os Evangelhos não buscam estigmatizar Pedro, ou os ladrões, ou a multidão como um todo, ou judeus como povo, mas revelar o enorme poder do contágio mimético – uma revelação válida para a cadeia inteira de assassinatos que se estendem retroativamente da Paixão até a “fundação do mundo”. Os Evangelhos possuem uma poderosa razão para suas constantes referências a esses assassinatos, e concerne a duas essenciais e ainda negligenciadas palavras, skandalon e Satanás.